quarta-feira, 23 de março de 2011

Pergunta 1 de Mathias Rudolph a Marcus Vinicius Brancaglione sobre RBC em Quatinga Velho

Perguntas elaboradas para tese de Mestrado pelo pesquisador Mathias Rudolph da Universidade de Lundenberg, Alemanha, sobre o projeto do Consórcio da Renda Básica de Cidadania em Quatinga Velho, Brasil. Respostas de Marcus Vinicius Brancaglione, Coordenador Geral de Projetos do ReCivitas. (Setembro 2010)

1. MATHIAS: Marcus, eu me lembro de conversar com você sobre o modo de financiar a RBC e você disse que se fosse financiado de tal e tal jeito não seria mais uma RBC.

Quais são, em sua opinião, as principais características da Renda Básica de Cidadania, como você define a RBC?

MARCUS: Antes de começar propriamente a responder as perguntas vou reservar esse primeiro parágrafo para explicar como procederei com o questionário. Primeiro responderei de forma dissertativa suas questões, justificando e embasando o máximo possível as colocações; depois, apenas pontuarei as respostas para ser mais sintético e direito. Espero dar assim respostas com a profundidade exigida, mas sem perder a objetividade.

1. Vamos à primeira questão:

O caso a que você se refere foi sobre a distribuição dos rendimentos do Fundo de Investimento da RBC - quanto do rendimento iria para os investidores, quanto iria para a RBC; acho que vale a pena, explicar o caso porque elucidaria algumas questões: na proposta apresentada pelo potencial investidor o capital destinado era mais que suficiente para pagar a RBC em QV, porém o montante destinado para a RBC em relação ao destinado aos investidores não apenas manteria a desigualdade, mas a aumentaria.

O conceito de um Fundo de Investimento para a RBC tem características muito interessantes, onde a principal é com certeza que o investidor não dilapida seu capital. Contudo, se o processo de concentração de capital não for revertido, a RBC perde sua finalidade de promoção de igualdade, para se tornar mera complementação de renda. Claro, que esse processo só toma proporções dentro de uma estrutura macro e não micro como QV, mas não utilizar soluções que não possam ser replicadas; e que continuem fazendo sentido dentro em uma comunidade maior, por exemplo, o país, são princípios caros ao projeto.

Portanto se considerarmos a RBC como instrumento de promoção de justiça e igualdade, a RBC exige mais do que distribuição de renda, exige redistribuição.[1]

Para que não fique ambíguo, por redistribuição de renda, não estamos nos referindo à socialização do capital, mas sim em redução da desigualdade social. Por isso defendemos que os rendimentos (descontados as perdas) deveriam ser usados para pagar a RBC, de modo a redistribuir renda sem subtraindo o capital (isso é o mínimo).

Eis uma característica que embora não conste de nenhuma definição teórica da RBC, consideramos fundamental: o modelo de financiamento da RBC seja ela qual for deve implicar em redistribuição de renda, pois somente assim podemos reduzir as desigualdades sociais.[2]

Veja, com isto não estamos defendamos que seja objetivo da RBC acabar com a pobreza. Não, não consideramos este o foco que principal da RBC, e sim a liberdade. Justamente porque não acreditamos que renda sem liberdade, possa eliminar a pobreza, mesmo que consideremos apenas a material. Devemos lembrar o quanto o básico, a liberdade e a pobreza estão relacionados como coloca precisamente Tocqueville: as necessidades básicas tendem a crescer na proporção do desenvolvimento de uma sociedade. E evidentemente quanto maior o nível de desigualdade de renda, menor o acesso a esse básico “crescente” e o grau de liberdade.

Estou dando tanta ênfase a esta questão não apenas porque a redução de desigualdades e redistribuição de renda são características que não podem faltar a RBC, mas porque através desta explicação pode-se notar como elaboramos ou trabalhamos o conceito de RBC de acordo com o necessário para atingir o objetivo de promoção de justiça, dignidade e cidadania com a RBC.

A RBC não é, portanto a finalidade da sua realização; é instrumento de promoção dos princípios que constituem sua definição. Em outras palavras, quando os fins são idênticos aos princípios, os fins não apenas justificam os meios, os fins constituem os meios sem nenhum prejuízo aos princípios (sobretudo éticos), justamente porque os princípios são nada mais nada menos que os próprios fins.

Sem essa congruência entre idealismo e pragmatismo é impossível aplicar uma RBC não apenas sem perverter seu espírito de justiça social e liberdade; sem congruência entre idealismo e pragmatismo é impossível realizar a RBC!

Se tivermos a sincera intenção de fazer da RBC mais do que um discurso e colocá-la de fato em prática, precisamos, portanto de uma definição de RBC que não apenas abranja o processo de pagamento, mas também o processo de financiamento.

Uma RBC que minimamente mereça esse nome precisa de fontes de financiamento - sejam elas quais forem (doações, impostos, rendimentos...) - congruentes com os princípios que fundamentam a RBC. Isto não é preciosismo, nem virtuosismo: a realização do ideal, do objetivo de uma renda básica incondicional não se resume ao pagamento da renda, passa primeiro necessariamente pela captação dos recursos; e como esta renda será financiada, a viabilização de seus recursos definirá junto com todas conhecidas características de incondicionalidade e universalidade se esta renda é ou não RBC.

Por exemplo: não poderemos afirmar que um governo que paga uma RBC quando o montante dos tributos impostos nos gêneros básicos é superior a “renda básica”; nem que uma renda proveniente de um Fundo de Investimento que remunera mais os investidores do que distribui renda é propriamente uma RBC.

O processo ou sistema que viabiliza uma RBC deve estar de acordo com os princípios da RBC, sob-pena de descaracterizá-la. Pode parecer um princípio evidentemente, mas na prática não é (vide o bolsa-família).

Primeiro: não se constitui a RBC via distribuição compensatória de renda mínimas, instrumento de clientelismo político dentro da máquina estatal cada vez mais burocrática e inchada. Segundo: não se constitui a RBC deturpando-a dentro do mercado como um “produto financeiro socialmente correto” e consequente apenas em mais uma fonte de lucro;

e Terceiro, sobretudo, não se constitui RBC reduzindo-a a mera fonte de recursos para ONGs ou “mercado de trabalho alternativo” para agentes sociais e tecnocratas.

Logo foi de acordo com essa mesma lógica, e não também por virtuosismo que decidimos transferir TODOS os recursos destinados (doações) ao projeto diretamente para a RBC. (100% das doações para a RBC). A RBC demanda absoluta transparência e simplicidade. Porque transparência exige simplicidade. Separar as fontes de financiamento da RBC dos custos operacional não é uma característica fundamental de um sistema de RBC, mas é um instrumento importantíssimo para quem financia o sistema (contribuintes) saiba que a transferência de dinheiro efetuada, é de fato RBC, e não subterfúgios para realização de outros interesses, como os acima enumerados.

Em suma como a realização de qualquer ideal a RBC demanda que os interesses ou objetivos de sua aplicação não sejam nunca outros que senão a realização de seus princípios, os princípios de liberdade, justiça e dignidade que constituem a definição da RBC.

Não vou me estender mais em outras características do projeto, porque creio que os exemplos cumprem a finalidade: para nós a RBC não se reduz a sua definição conceitual, a RBC e as características que deve possuir para ser considerada como tal são constituídas pelo próprio sistema que a viabiliza, isto é, seu financiamento e pagamento como processo pelo qual ambos se efetuam de fato. Ou seja, A RBC não começa nem termina no pagamento da renda, ela é - definida por - todo o processo ou o sistema que a viabiliza e, portanto a constitui de fato.

Como fazemos da RBC uma prática, nossa definição é sistêmica e dinâmica. Sistêmica porque busca compreender todo o processo de viabilização e sustentação. E dinâmica porque busca constantemente se reelaborar para realizar seus princípios-fins diante das necessidades.

Assim olhando para esse processo (histórico) de constituição de uma definição aplicável de RBC, buscamos como primeira inspiração para a práxis a iniciativas em Jobra de M.Yunus; as definições de V. Parijs, em especial seu conceito de comunidade política; As observações de R. Putnam e A. Sen sobre a importância da confiança-reciprocidade e sem nos esquecer das criticas de P. Demo sobre os mínimos vitais. Em oposição a estes decidimos manter ainda como pano de fundo conceitual pensadores como: Maquiavel, Darwin, Marx e sobretudo Hobbes não por propriamente concordar com os argumentos destes, mas por tomá-los como as bases conceituais que precisávamos superar, pois representam as características da sociedade sob a qual tencionamos transformar.[3]

De certa forma a definição da RBC adotada precisava vencer desafios inerentes ao desenho do projeto, bem como as próprias dificuldades das circunstancias de sua realização. Por exemplo, o conceito de comunidade política foi fundamental para que pudéssemos viabilizá-la em escala micro, contudo como conciliar esse desenho ao princípio da universalidade e incondicionalidade ou mais precisamente dizer que morar nesta comunidade não se constitui de certa forma em uma condicionalidade, e consequentemente uma restrição à universalidade?

Tais dificuldades nos obrigaram a refletir sobre a amplitude da RBC inclusive no plano das Nações. Afinal de contas pela mesma lógica, possuir a cidadania, ter ou estar vinculado à propriedade da terra (comprovar a morada) em um determinado pais, seriam também restrições ao caráter universal da RBI. Uma verdadeira RBI não é apenas um direito civil ou econômico, mas universal e portanto deve abranger nada mais nada menos que todos os seres humanos. Mas não seria isto impossível?

Como toda conquista social, a RBC não se fará da noite para o dia, nem muito menos por decretos. Como dissemos a RBC para ser real precisa ser processo e não mero conceito. Isto significa que independente do lugar, ou escala que esta se inicie o importante é que esse processo não esteja fechado para compreender não menos que todos os seres humanos. O mínimo que se exige para que o processo seja coerente é não ter entraves para que a comunidade política se expanda de acordo com sua deliberação; e de preferência seja modelo de tecnologia social perfeitamente transferível para outras comunidades.

Deve, portanto compreender-se como apenas um passo em direção a uma renda básica universal, uma célula do que por multiplicação constituir-se-á no sistema.

Eis uma característica fundamental de um processo ou sistema de RBC, ele não pode ter como meta final apenas uma localidade, estado, ou Nação, a renda básica deve tender para a universalidade. É por isso que mesmo não fazendo parte de uma definição da RBC, o conceito de autodeterminação, capaz de transcender fronteiras geopolíticas, é tão importante para que não reduzamos a RBC a uma renda para uma localidade independente de sua escala ou localização. Esse princípio é fundamental para que nos próximos estágios possamos constituir a RBC como uma verdadeira rede de seguridade social incondicional, o primeiro passo a um verdadeiro estado de seguridade social universal.

Em suma, a radicalização da incondicionalidade é o único meio para constituir o processo de universalização. E o termo “radicalização da incondicionalidade” significa só e tão somente a completa abolição de toda e qualquer forma de discriminação de seres humanos.

Sem respeito e aplicação deste princípio não poderemos iniciar um processo de realização da RBC, comecemos por 10, 100 ou 1 milhão de pessoas, não importam os números o que importa é o princípio. Daí a importância fundamental da incondicionalidade a qual podemos discorrer com mais propriedade na terceira questão.

Aqui para encerrar a definição de uma renda básica e suas principais características vale apenas salientar a importância de concebê-la para além das políticas de transferência de renda, mesmo porque encerrá-la dentro de esferas econômicas e governamentais é desperdiçar todo o potencial que tecnologias sociais desenvolvidas para viabilizar esse direito têm para se constituir em novos sistemas não apenas econômicos, mas políticos. A realização da concepção de uma renda básica como direito humano aplicado pode implicar numa completa revisão do conceito de contrato social e do conceito de estado civil ou de paz.

Por isso do ponto de vista da primeira ação, uma das mais importante percepções que desenvolvemos sobre a RBC a que nos permitiu dar início ao projeto, foi de que não precisamos da anuência dos governos para iniciar um processo de implantação da RBC.

De fato foi preciso escapar ao arcabouço estatal, ou do comodismo político, para dar início a uma experiência da RBC. Não podemos limitar nossa visão de que a RBC é uma renda paga por um governo financiada por algum tipo de imposto. Até porque a RBC tem potencial para ser mais que isto. E uma visão tão restrita da RBC vem a se constituir no seu oposto, pobreza política: ou mais precisamente, reforço da concentração de capital político.



[1] Uma das criticas sobre o Bolsa-Família é que ele tem sido incapaz de quebrar a nociva concentração de Renda no Brasil (GINI).

[2] PNUD elaborou um novo índice de desenvolvimento humano para demonstrar o quanto essa desigualdade afeta o desenvolvimento.

[3] De Maquiavel devemos a compreensão de que os fins justificam os meios; porém somente quando fins são absolutamente idênticos aos princípios, sob pena cair em amoralidade.

De Darwin devemos a compreensão da evolução como processo de competição e seleção dos indivíduos mais capazes de se adaptar as necessidades do meio, porém inserido e secundário perante a prevalência do associativismo dos grupos mais cooperativos capazes de adaptar o meio as suas necessidades, sob pena cair em eugenia.

De Marx devemos a compreensão da necessidade de superação da luta de classes e da sua dialética, pois o produto dos conflitos são escombros, o novo não é síntese de tese e antítese, mas o produto de qualquer coisa que não seja ou esteja inserido nesse processo dialético de produção de nada mais nada menos do que o mesmo sob pena de perpetuação dos conflitos.

E finalmente de Hobbes devemos a compreensão de que sociedades são constituídas por pactos sociais de renúncia total a violência, porém não por monopólio de violência mas sim por supressão das privações.

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