quarta-feira, 23 de março de 2011

Pergunta 2 de Mathias Rudolph a Marcus Vinicius Brancaglione sobre RBC em Quatinga Velho

MATHIAS: Eu achei que a fundamentação teorética do projeto é muito grande. Por exemplo, eu me lembro que você falava da pedagogia de libertação… Como vocês descreveriam a metodologia do projeto e quais são os exatos fundamentos teoréticos da metodologia do projeto?

Parte da metodologia foi que no começo do projeto vocês estimularam a criação do conselho dos moradores. Isso foi para cumprir quais metas? Qual idéia fica por trás disso?

Como parte da metodologia vocês tiveram certas metas relacionadas ao prosseguimento do projeto (por exemplo: em um ano tem que acontecer isso e aquilo etc.)?

1. MARCUS: Aqui já podemos começar a responder a segunda questão:

No modelo P2P (people to people) adotado, o financiamento por doações de pessoas físicas sem isenção fiscal, embora não seja um modelo auto-sustentado (por enquanto), tem um importante componente pedagógico ou de educação política: lembrar que quem financia a RBC nunca são os governos mas sempre os contribuintes. O governo não pode portanto ser visto como fonte do bem comum, pois é intermediário, ou melhor, deve ser apenas um meio.

Esse processo de conscientização política: é a essência de uma pedagogia da liberdade, profundamente conexa com o conceito fundamental de incondicionalidade; Um processo que busca emancipar o cidadão, retirando-o da condição de alienado de seus direitos políticos e associativos; e instigando-o a abandonar a cidadania tutoriada por uma cidadania plena.

Um processo pedagógico que não se efetua tão somente pela aplicação do conceito de democracia direta [1] por meio da comunidade política somente para aqueles que recebem a renda; é uma pedagogia que busca também atingir todos os envolvidos pelo projeto, membros da ONGs e financiadores e até observadores com uma mensagem clara: o ser humano tem em sua essência todas as condições para o seu desenvolvimento, e todas as faculdades para exercer seus direitos e cumprir seus deveres, livre da coação, repressão e privação.

A livre iniciativa tanto no plano de quem recebe como no plano de quem paga a RBC é a essencial para o desenvolvimento da responsabilidade social. E se pensarmos dentro de um modelo universal como a RBC o exige, temos que adotar o modelo de contribuições voluntárias ou livres. Um modelo, portanto que transcenda a lógica de luta de classes.

No modelo da luta de classes, supõe-se que é preciso coagir o cidadão rico a pagar seus impostos, como uma espécie de compensação ou indenização pela posse. No modelo universal onde não aplicamos a RBC sobre classes, mas sobre todos os membros da comunidade, o imposto perde sentido, pois a qualidade do indivíduo que paga é a mesma de quem recebe, pura e simplesmente a de cidadão. Não é o rico pagando ao pobre, é o cidadão pagando para o cidadão. O imposto portanto seria equivalente a imposição de uma condicionalidade, ou contrapartida!

Cidadãos com direitos e deveres iguais não precisam de coação para cumprir seus deveres nem muito menos para exercer seus direitos precisam simples e tão somente dos meios (oportunidades)[2].

Dentro, portanto de uma visão libertária, não só é perfeitamente possível financiar uma RBC, com contribuições voluntárias, mas é o único meio congruente com o exercício da liberdade exigido pelo conceito de uma RBC. É a sociedade que de livre e espontânea vontade compreendera, decidira e assumir a responsabilidade de pagar uma renda básica incondicional a todos seus membros. A instituição governamental ou não, mas necessariamente de interesse público que efetuará essa realização, deve ser nada mais que o instrumento de sua viabilização, o meio.

Daí a importância fundamental da constituição da comunidade política. Onde não existe liberdade política, onde não há plenitude do exercício da cidadania, uma RBC nada mais é do que uma renda mínima, uma ferramenta econômica de dominação política – promovendo poder ao invés de liberdade.

Durante todo o processo seja de condução das reuniões seja nas visitas dos sistemas livres, procuramos nos manter atentos constantemente para essa relação entre poder e liberdade.

De fato, é na ação cotidiana do projeto, nas relações interpessoais que temos a chance de manifestar o espírito da RBC e promover a liberdade sem cair na tentação de controle ou corrompendo o processo em relações de poder.

Embora seja comum perder-se a noção da liberdade quando tomada como poder. Dentro de uma visão sistêmica que compreenda as complexas relações humanas, a única forma legítima de poder é a liberdade. Empoderamento é processo de libertação, recuperação do livre-arbítrio e de possibilidades alienadas. Todas as outras formas de poder embora pareçam a curto prazo, sob uma visão minúscula, aumentar a esfera de ação de quem os detém e retém, na verdade sob uma visão ampla, de longo prazo, só fazem produzir a privação das liberdades.[3]

Estar ciente desta oposição entre liberdade e poder, e do componente psicológico de frustração-compensação que nutre o desejo de poder, gênese da miséria humana, é fundamental na condução do projeto e se faz presente até num simples “bom-dia!” quando chegamos para uma visita.

Em uma única palavra, Liberdade; eis o elemento central de todo o método. Entendemos e buscamos aplicar a RBC como instrumento para a liberdade. Compreendendo obviamente que o meio para geração da liberdade ou da sua privação é sempre um e o mesmo: o capital. Não o capital apenas em seu sentido ordinário, econômico, mas capital em seu sentido pleno: Social.

Capital social formado pela composição do capital: econômico, político e cultural- respectivamente: renda, cidadania e informação. O básico não pode ser menos que isso. E a promoção ao acesso de qualquer das formas de capital, não pode resultar em redução do acesso a outra. A chave está, portanto na promoção da comunidade política que para merecer este nome não pode ser imposta por qualquer medida exógena, mas deve ser determinada pelos próprios participantes da comunidade - autodeterminação. Uma comunidade que não se forma a partir do livre fluxo do capital, que não se constitui por vontade de seus membros, não é sequer uma comunidade, quanto mais uma comunidade política.

A compreensão do capital mais do que nunca foi reduzida a seu aspecto econômico, financeiro e enfim monetário, sinônimo de dinheiro. Essa deturpação desvirtua a natureza completa do capital e sua natureza social, composta das três esferas da sociedade: econômica, política e cultural. Natureza, cuja riqueza é imaterial, mas muito mais real do que o próprio dinheiro, as relações humanas. Relações humanas que são a conexões de uma rede social que forma a toda comunidade.

Tentar quebrar essa deturpação, resgatar a noção completa da verdadeira riqueza, e tentar promover o acesso a esse bem comum é o objetivo do método pedagógico que empregamos. Entretanto sem jamais cair na armadilha hipócrita de colocar que processos educativos abstratos substituem necessidades reais.[4]

Riqueza é o capital, e o capital aqui não é sinônimo de quantidades acumuladas de trocas, mas da diversidade de conexões da rede de relações pessoais que forma o próprio capital social, ou simplesmente capital, porque o social é o capital gerador de todos os demais.

Por meio da democracia direta, da autodeterminação e dos sistemas livres, buscamos dar o verdadeiro significado da RBC, instrumentalização do direito humano ao capital em seu sentido pleno.

Ora se entendemos e aplicamos a renda básica não apenas como distribuição de dinheiro, mas como desbloqueio do acesso ao capital[5], o método, a relação do ReCivitas com a comunidade precisava se constituir como processo não apenas de transferência de renda, mas em processo de disponibilização da informação, e sobretudo em processo de negação de relação de poder, de modo a não usurpar o espaço necessário para o nascimento, desenvolvimento e empoderamento de uma sociedade livre, ou melhor da comunidade política - que na observância dos princípio da autodeterminação e democracia direta se tornam sinônimos.

Partimos do princípio que o aprendizado e o desenvolvimento são inerentes e inevitáveis, bastando para tanto não obstruí-los. Educação é então antes de tudo não apenas geração de oportunidades de escolha, mas geração de oportunidades para produção de suas próprias escolhas, ou como diria o caboclo “não se ensina nada, porque tudo se aprende”. Esse processo pedagógico que parece bastante natural e fácil de ser aplicado, deixa de sê-lo quando todo sistema onde estamos inseridos se sustenta e caminha em sentido oposto. Em um sistema de produção artificial de escassez, torna-se um desafio gigante distribuir renda sem provocar acomodação; garantir cidadania sem gerar dependência; e fornecer informação sem doutrinação.

Daí a importância de disponibilizarmos os meios sem induzir o uso; para que antes que se faça o ato, se faça o entendimento de sua necessidade ou a consciência de fazê-lo, ou não.

Devemos abrir e não ocupar este espaço necessário para a expressão do fenômeno mais importante e primordial de todo e qualquer processo pedagógico: a livre e espontânea vontade.

Logo, o capital é instrumento de liberdade quando promove oportunidades sem cercear a livre iniciativa, que é inerente a todo ser dotado de vontade, ou seja, todo ser vivo. Contudo, no plano humano os bens, inclusive os básicos não se manifestam ou melhor se produzem onde não existe significado.

O significado é a essência que produz sentido e valor a qualquer bem. Isto implica que todas as ações envolvidas devem estar repletas de significado. É o significado, ou melhor, a compreensão do significado que diferencia por exemplo: RBC de esmola; o direito da benesse, e a conquista da sorte ou previdência. Mais precisamente, o ato destituído de significado é um ato destituído de sentido, e conseqüentemente destituído de significância ou valor.

Entretanto ao contrário do que possa parecer tanta teoria, o significado não se encerra no embasamento teórico, o ideal não se expressa na definição da RBC, nos princípios, ou nas descrições abstrata do direito; pela simples razão de que nenhum significado não é produzido teoricamente, porque conhecimentos não se transmitem, se produzem. Não há emissores-receptores mas inspirador-produtores. Pelo método, a teoria apenas orienta a prática para que se possa produzir por inspiração o fenômeno do significado.

Do signo inserido nos atos e circunstâncias inspiradoras providas pelo método, nascerá o significado se e somente se aquele que presencia participa interage ou simplesmente sofre a ação ou circunstancia compreende ou atribui a esse ato um significado que seu autor supõe sugerir.

No processo pedagógico não é a teoria ou o discurso, mas o ato carregado de sentido, que produzirá algum significado. Esse sentido não se transmite propriamente por linguagens, símbolos ou códigos, por ações ou discursos, mas sim por atos repleto de sentimento e , portanto capazes de expressar o sentido.

Porque é o sentimento que confere ao ato sentido. Não sentimento como sinônimo de emotividade, mas sentimento implícito no comportamento que sugere ou supõe estado de profunda dissipação de dúvidas ou incertezas quanto à existência de sentido nos próprios atos.

A percepção ou suposição deste estado psicológico recebe muitos nomes (fé, crença, vocação, comprometimento, sinceridade, dedicação, eloqüência, seriedade, conhecimento, confiança, etc...) contudo sempre expressando a mesma impressão de segurança quanto à existência de um sentido no ato.

Nem todo ser humano é treinado para interpretar ou decodificar discursos, mas todo ser humano é naturalmente dotado de sensibilidade para identificar nos detalhes da comunicação- impossíveis de se controlar e simular todo o tempo- esse sentimento.

Um sentimento ou “estado de espírito” difícil de simular, afinal de contas se propaga pela ação, ou melhor, pelo discurso corroborado pela ação, em suma, pela prática. Por exemplo, se a iniciativa de pagamento da RBC se constitui por si mesmo num gesto simbólico de passagem do discurso ao ato. O gesto não pode ficar apenas no simbolismo: não basta pagar a RBC, o pagamento da RBC deve ser feito com a convicção de quem professa sua fé na liberdade humana para que se torne um testemunho de fato dessa confiança no ser humano.

Com a convicção da certeza que não está se alimentando utopias, mas futuro. E isso não pode ser apenas discurso, precisa ser objetivo de realização e certeza de sua possibilidade, porque quem duvida, vacila e quem vacila, já era.

O processo pedagógico ou de transformação se efetua primeiro nos agentes que entendendo, acreditando e agindo em consonância com os princípios da RBC, sobretudo, o do respeito à dignidade e liberdade humana, conferem a sua forma de agir o sentido necessário à elaboração do significado do conceito por aquele que presencia-vivencia a relação pessoal.

Chamamos isso de pedagogia da inspiração[6] por reconhecimento que o principal recurso que quem pretende educar pode utilizar sem inibir ou mesmo destruir o livre desenvolvimento é constituir-se em exemplo que se manifesto com fidelidade e sinceridade e sobretudo sensibilidade, dará ensejo à produção do significado pelo outro, pelo único processo de produção de entendimento possível: a aprendizagem.

O que parece complexo é na prática bastante simples e deve ser reconhecido aqui o protagonismo da Bruna e do auxílio da Marli em sua aplicação: é o querer ouvir, é o querer entender, é o se envolver-se; é buscar o desenvolvimento da auto-estima prestando respeito; buscar o desenvolvimento da fidelidade prestando confiança; é o desenvolvimento da responsabilidade pela livre iniciativa; é promoção da cidadania pela consideração a pessoa. É a busca da emancipação, pelo exemplo de renuncia ao comodismo. É a quebra da desconfiança, fiscalização e burocracia, com a transparência. É a troca do discurso pela conversa; e o ouvir antes de falar.

Na verdade é o buscar se conectar aos indivíduos, para ser um catalisador da formação da rede social. Tentar conectar-se diretamente a cada indivíduo para, como uma ponte, induzir o fenômeno da associação entre eles até que se tornem de fato uma comunidade política completamente capaz de se inter-relacionar diretamente, isto é de forma independente desta ou de quaisquer outras pontes.

Fica evidente, portanto a nossa meta de desobstruir a produção de capital social, pois o capital social gera em conseqüência natural toda a riqueza econômica cultural e (não nos enganemos) também política, principalmente quando compreendermos as formas de decisões coletivas como a democracia enquanto um bem comum (capital).

Contudo a ordem natural não irá se desenvolver dentro de um ambiente de privações. Ora não podemos simplesmente tentar instigar a produção de capital social, ou tentar promover o associativismo, onde o suprimento das necessidades básicas materiais inexiste. Em uma sociedade onde a base da exploração ou dominação do homem pelo homem se faz pela escassez ou rarificação do essencial (vida e liberdade) é preciso devolver as condições naturais de desenvolvimento, findar os estados de miséria e privações quebrando primeiro a escassez artificialmente criada para a exploração, para então assim desimpedir a emancipação ou auto-suficiência.

A pobreza, em todos os sentidos de ausência de capital, é um subproduto da servidão. E a mãe de toda servidão é a privação. Se quisermos verdadeiramente libertar o homem, emancipá-lo, precisamos primeiro quebrar o estado de privação, porque a gênese de toda servidão, acomodação, exploração e alienação é a insegurança, o medo da não-sobrevivência.

Por isso, em suas metas o projeto prevê o aumento constante do grau de segurança e liberdade. Isto quer dizer primeiro um maior grau de certeza do pagamento da RBC; e segundo um maior grau de emancipação política e econômica da comunidade.

Isto implicará por fim: primeiro na emancipação e auto-sustentação da RBC na comunidade até o ponto da própria comunidade pagar sua renda; e segundo na comunidade assumindo a responsabilidade das decisões ao ponto de definir o valor da RBC, dispensando todo e qualquer ingerência ou intermediação exógena, inclusive do ReCivitas.

Este é o sinal, quando então nos fizermos completamente desnecessários, que o fim do projeto foi atingido.



[1] Democracia direta: é o exercício do poder de decisão sem intermediários ou representantes, efetuada em assembléia pela comunidade.

2 No sentido de capabilityes de Amartya Sen.

3 A lógica de que o grau de Liberdade é tanto maior quanto for o poder, isto é, as possibilidades de quem o detém, só é verdadeiro se o “quem” - individuo ou coletividade -não produz esse poder, essas possibilidades, em detrimento, alienação ou por exploração de outrem. Sob pena de ambos ficarem presos a este processo de geração de poder: o alienado preso por privação do capital a produção de poder (oportunidades) para outro, insaciável e incapaz de se contentar com o que é ou que tem. E o outro, insaciável, preso a dependência de precisar de alienados que produzam oportunidades (poder) para remediar seu descontentamento pelo constante vazio do ser com o ter (capital).

4 Aliás chamar esses processos convencionais de adestramento humano de educação é um acinte quando tudo que fazem e forma concedidos para fazê-lo, é justamente inibir a aprendizagem.

5 Erich Fromm em “A revolucao da esperança” chega a defender uma posição diferente da de Van Parijs e Vanderborght: uma RBC pode ser viabilizada também pela disposição gratuita de bens e serviços. Interessantíssimo. Dado que a ninguém (inclusive o Estado) seja reservado o monopólio desta provisão de Milton Friedman.

6 Na verdade quem nos colocou que a pedagogia que usamos é bastante semelhante a de Paulo Freire, foram os membros da BIEN Ingrid Van Nierkerk e Toru Yamamori em sua visitas. Confesso que depois desta observação, passamos a estudá-la e a incorporá-la a nossa base teórica naquilo que couber. É provável que tenhamos recebido influencia, ainda que inconsciente, das teorias de Freire, porém somente após estudá-lo poderíamos fazer as referencias adequadas. Isto ocorreu com vários autores que só viemos entrar em contato e nos identificar após o início do projeto (Ilich, Clasters, Fromm, Kropotkim, Proudhon, Bakunin...).

Pergunta 1 de Mathias Rudolph a Marcus Vinicius Brancaglione sobre RBC em Quatinga Velho

Perguntas elaboradas para tese de Mestrado pelo pesquisador Mathias Rudolph da Universidade de Lundenberg, Alemanha, sobre o projeto do Consórcio da Renda Básica de Cidadania em Quatinga Velho, Brasil. Respostas de Marcus Vinicius Brancaglione, Coordenador Geral de Projetos do ReCivitas. (Setembro 2010)

1. MATHIAS: Marcus, eu me lembro de conversar com você sobre o modo de financiar a RBC e você disse que se fosse financiado de tal e tal jeito não seria mais uma RBC.

Quais são, em sua opinião, as principais características da Renda Básica de Cidadania, como você define a RBC?

MARCUS: Antes de começar propriamente a responder as perguntas vou reservar esse primeiro parágrafo para explicar como procederei com o questionário. Primeiro responderei de forma dissertativa suas questões, justificando e embasando o máximo possível as colocações; depois, apenas pontuarei as respostas para ser mais sintético e direito. Espero dar assim respostas com a profundidade exigida, mas sem perder a objetividade.

1. Vamos à primeira questão:

O caso a que você se refere foi sobre a distribuição dos rendimentos do Fundo de Investimento da RBC - quanto do rendimento iria para os investidores, quanto iria para a RBC; acho que vale a pena, explicar o caso porque elucidaria algumas questões: na proposta apresentada pelo potencial investidor o capital destinado era mais que suficiente para pagar a RBC em QV, porém o montante destinado para a RBC em relação ao destinado aos investidores não apenas manteria a desigualdade, mas a aumentaria.

O conceito de um Fundo de Investimento para a RBC tem características muito interessantes, onde a principal é com certeza que o investidor não dilapida seu capital. Contudo, se o processo de concentração de capital não for revertido, a RBC perde sua finalidade de promoção de igualdade, para se tornar mera complementação de renda. Claro, que esse processo só toma proporções dentro de uma estrutura macro e não micro como QV, mas não utilizar soluções que não possam ser replicadas; e que continuem fazendo sentido dentro em uma comunidade maior, por exemplo, o país, são princípios caros ao projeto.

Portanto se considerarmos a RBC como instrumento de promoção de justiça e igualdade, a RBC exige mais do que distribuição de renda, exige redistribuição.[1]

Para que não fique ambíguo, por redistribuição de renda, não estamos nos referindo à socialização do capital, mas sim em redução da desigualdade social. Por isso defendemos que os rendimentos (descontados as perdas) deveriam ser usados para pagar a RBC, de modo a redistribuir renda sem subtraindo o capital (isso é o mínimo).

Eis uma característica que embora não conste de nenhuma definição teórica da RBC, consideramos fundamental: o modelo de financiamento da RBC seja ela qual for deve implicar em redistribuição de renda, pois somente assim podemos reduzir as desigualdades sociais.[2]

Veja, com isto não estamos defendamos que seja objetivo da RBC acabar com a pobreza. Não, não consideramos este o foco que principal da RBC, e sim a liberdade. Justamente porque não acreditamos que renda sem liberdade, possa eliminar a pobreza, mesmo que consideremos apenas a material. Devemos lembrar o quanto o básico, a liberdade e a pobreza estão relacionados como coloca precisamente Tocqueville: as necessidades básicas tendem a crescer na proporção do desenvolvimento de uma sociedade. E evidentemente quanto maior o nível de desigualdade de renda, menor o acesso a esse básico “crescente” e o grau de liberdade.

Estou dando tanta ênfase a esta questão não apenas porque a redução de desigualdades e redistribuição de renda são características que não podem faltar a RBC, mas porque através desta explicação pode-se notar como elaboramos ou trabalhamos o conceito de RBC de acordo com o necessário para atingir o objetivo de promoção de justiça, dignidade e cidadania com a RBC.

A RBC não é, portanto a finalidade da sua realização; é instrumento de promoção dos princípios que constituem sua definição. Em outras palavras, quando os fins são idênticos aos princípios, os fins não apenas justificam os meios, os fins constituem os meios sem nenhum prejuízo aos princípios (sobretudo éticos), justamente porque os princípios são nada mais nada menos que os próprios fins.

Sem essa congruência entre idealismo e pragmatismo é impossível aplicar uma RBC não apenas sem perverter seu espírito de justiça social e liberdade; sem congruência entre idealismo e pragmatismo é impossível realizar a RBC!

Se tivermos a sincera intenção de fazer da RBC mais do que um discurso e colocá-la de fato em prática, precisamos, portanto de uma definição de RBC que não apenas abranja o processo de pagamento, mas também o processo de financiamento.

Uma RBC que minimamente mereça esse nome precisa de fontes de financiamento - sejam elas quais forem (doações, impostos, rendimentos...) - congruentes com os princípios que fundamentam a RBC. Isto não é preciosismo, nem virtuosismo: a realização do ideal, do objetivo de uma renda básica incondicional não se resume ao pagamento da renda, passa primeiro necessariamente pela captação dos recursos; e como esta renda será financiada, a viabilização de seus recursos definirá junto com todas conhecidas características de incondicionalidade e universalidade se esta renda é ou não RBC.

Por exemplo: não poderemos afirmar que um governo que paga uma RBC quando o montante dos tributos impostos nos gêneros básicos é superior a “renda básica”; nem que uma renda proveniente de um Fundo de Investimento que remunera mais os investidores do que distribui renda é propriamente uma RBC.

O processo ou sistema que viabiliza uma RBC deve estar de acordo com os princípios da RBC, sob-pena de descaracterizá-la. Pode parecer um princípio evidentemente, mas na prática não é (vide o bolsa-família).

Primeiro: não se constitui a RBC via distribuição compensatória de renda mínimas, instrumento de clientelismo político dentro da máquina estatal cada vez mais burocrática e inchada. Segundo: não se constitui a RBC deturpando-a dentro do mercado como um “produto financeiro socialmente correto” e consequente apenas em mais uma fonte de lucro;

e Terceiro, sobretudo, não se constitui RBC reduzindo-a a mera fonte de recursos para ONGs ou “mercado de trabalho alternativo” para agentes sociais e tecnocratas.

Logo foi de acordo com essa mesma lógica, e não também por virtuosismo que decidimos transferir TODOS os recursos destinados (doações) ao projeto diretamente para a RBC. (100% das doações para a RBC). A RBC demanda absoluta transparência e simplicidade. Porque transparência exige simplicidade. Separar as fontes de financiamento da RBC dos custos operacional não é uma característica fundamental de um sistema de RBC, mas é um instrumento importantíssimo para quem financia o sistema (contribuintes) saiba que a transferência de dinheiro efetuada, é de fato RBC, e não subterfúgios para realização de outros interesses, como os acima enumerados.

Em suma como a realização de qualquer ideal a RBC demanda que os interesses ou objetivos de sua aplicação não sejam nunca outros que senão a realização de seus princípios, os princípios de liberdade, justiça e dignidade que constituem a definição da RBC.

Não vou me estender mais em outras características do projeto, porque creio que os exemplos cumprem a finalidade: para nós a RBC não se reduz a sua definição conceitual, a RBC e as características que deve possuir para ser considerada como tal são constituídas pelo próprio sistema que a viabiliza, isto é, seu financiamento e pagamento como processo pelo qual ambos se efetuam de fato. Ou seja, A RBC não começa nem termina no pagamento da renda, ela é - definida por - todo o processo ou o sistema que a viabiliza e, portanto a constitui de fato.

Como fazemos da RBC uma prática, nossa definição é sistêmica e dinâmica. Sistêmica porque busca compreender todo o processo de viabilização e sustentação. E dinâmica porque busca constantemente se reelaborar para realizar seus princípios-fins diante das necessidades.

Assim olhando para esse processo (histórico) de constituição de uma definição aplicável de RBC, buscamos como primeira inspiração para a práxis a iniciativas em Jobra de M.Yunus; as definições de V. Parijs, em especial seu conceito de comunidade política; As observações de R. Putnam e A. Sen sobre a importância da confiança-reciprocidade e sem nos esquecer das criticas de P. Demo sobre os mínimos vitais. Em oposição a estes decidimos manter ainda como pano de fundo conceitual pensadores como: Maquiavel, Darwin, Marx e sobretudo Hobbes não por propriamente concordar com os argumentos destes, mas por tomá-los como as bases conceituais que precisávamos superar, pois representam as características da sociedade sob a qual tencionamos transformar.[3]

De certa forma a definição da RBC adotada precisava vencer desafios inerentes ao desenho do projeto, bem como as próprias dificuldades das circunstancias de sua realização. Por exemplo, o conceito de comunidade política foi fundamental para que pudéssemos viabilizá-la em escala micro, contudo como conciliar esse desenho ao princípio da universalidade e incondicionalidade ou mais precisamente dizer que morar nesta comunidade não se constitui de certa forma em uma condicionalidade, e consequentemente uma restrição à universalidade?

Tais dificuldades nos obrigaram a refletir sobre a amplitude da RBC inclusive no plano das Nações. Afinal de contas pela mesma lógica, possuir a cidadania, ter ou estar vinculado à propriedade da terra (comprovar a morada) em um determinado pais, seriam também restrições ao caráter universal da RBI. Uma verdadeira RBI não é apenas um direito civil ou econômico, mas universal e portanto deve abranger nada mais nada menos que todos os seres humanos. Mas não seria isto impossível?

Como toda conquista social, a RBC não se fará da noite para o dia, nem muito menos por decretos. Como dissemos a RBC para ser real precisa ser processo e não mero conceito. Isto significa que independente do lugar, ou escala que esta se inicie o importante é que esse processo não esteja fechado para compreender não menos que todos os seres humanos. O mínimo que se exige para que o processo seja coerente é não ter entraves para que a comunidade política se expanda de acordo com sua deliberação; e de preferência seja modelo de tecnologia social perfeitamente transferível para outras comunidades.

Deve, portanto compreender-se como apenas um passo em direção a uma renda básica universal, uma célula do que por multiplicação constituir-se-á no sistema.

Eis uma característica fundamental de um processo ou sistema de RBC, ele não pode ter como meta final apenas uma localidade, estado, ou Nação, a renda básica deve tender para a universalidade. É por isso que mesmo não fazendo parte de uma definição da RBC, o conceito de autodeterminação, capaz de transcender fronteiras geopolíticas, é tão importante para que não reduzamos a RBC a uma renda para uma localidade independente de sua escala ou localização. Esse princípio é fundamental para que nos próximos estágios possamos constituir a RBC como uma verdadeira rede de seguridade social incondicional, o primeiro passo a um verdadeiro estado de seguridade social universal.

Em suma, a radicalização da incondicionalidade é o único meio para constituir o processo de universalização. E o termo “radicalização da incondicionalidade” significa só e tão somente a completa abolição de toda e qualquer forma de discriminação de seres humanos.

Sem respeito e aplicação deste princípio não poderemos iniciar um processo de realização da RBC, comecemos por 10, 100 ou 1 milhão de pessoas, não importam os números o que importa é o princípio. Daí a importância fundamental da incondicionalidade a qual podemos discorrer com mais propriedade na terceira questão.

Aqui para encerrar a definição de uma renda básica e suas principais características vale apenas salientar a importância de concebê-la para além das políticas de transferência de renda, mesmo porque encerrá-la dentro de esferas econômicas e governamentais é desperdiçar todo o potencial que tecnologias sociais desenvolvidas para viabilizar esse direito têm para se constituir em novos sistemas não apenas econômicos, mas políticos. A realização da concepção de uma renda básica como direito humano aplicado pode implicar numa completa revisão do conceito de contrato social e do conceito de estado civil ou de paz.

Por isso do ponto de vista da primeira ação, uma das mais importante percepções que desenvolvemos sobre a RBC a que nos permitiu dar início ao projeto, foi de que não precisamos da anuência dos governos para iniciar um processo de implantação da RBC.

De fato foi preciso escapar ao arcabouço estatal, ou do comodismo político, para dar início a uma experiência da RBC. Não podemos limitar nossa visão de que a RBC é uma renda paga por um governo financiada por algum tipo de imposto. Até porque a RBC tem potencial para ser mais que isto. E uma visão tão restrita da RBC vem a se constituir no seu oposto, pobreza política: ou mais precisamente, reforço da concentração de capital político.



[1] Uma das criticas sobre o Bolsa-Família é que ele tem sido incapaz de quebrar a nociva concentração de Renda no Brasil (GINI).

[2] PNUD elaborou um novo índice de desenvolvimento humano para demonstrar o quanto essa desigualdade afeta o desenvolvimento.

[3] De Maquiavel devemos a compreensão de que os fins justificam os meios; porém somente quando fins são absolutamente idênticos aos princípios, sob pena cair em amoralidade.

De Darwin devemos a compreensão da evolução como processo de competição e seleção dos indivíduos mais capazes de se adaptar as necessidades do meio, porém inserido e secundário perante a prevalência do associativismo dos grupos mais cooperativos capazes de adaptar o meio as suas necessidades, sob pena cair em eugenia.

De Marx devemos a compreensão da necessidade de superação da luta de classes e da sua dialética, pois o produto dos conflitos são escombros, o novo não é síntese de tese e antítese, mas o produto de qualquer coisa que não seja ou esteja inserido nesse processo dialético de produção de nada mais nada menos do que o mesmo sob pena de perpetuação dos conflitos.

E finalmente de Hobbes devemos a compreensão de que sociedades são constituídas por pactos sociais de renúncia total a violência, porém não por monopólio de violência mas sim por supressão das privações.