segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Comunidade e Autonomia

O Ente, a identidade, e o indivíduo

O indivíduo autônomo não é aquele capaz de realizar por sua própria conta ou sem ajuda de ninguém, tudo que pode, tem vontade, ou muito menos deseja, mas o indivíduo que dispõe do necessário para realizar todo o seu potencial, de acordo com sua capacidade pessoal e as possibilidades do meio que está inserido ou da rede na qual se insere.

Comumente nos referimos à pessoa autônoma como aquela capaz de se sustentar sem a ajuda dos outros, O quando o indivíduo autônomo é aquele dotado da liberdade real para se realizar plenamente. Mas todos nascemos dependentes de nossas famílias, comunidade, sociedade e meio ambiente, e mesmo que confundamos liberdade com solidão, e nos apartemos de tudo e de todos, ainda sim como qualquer bicho dependeremos até a morte das disponibilidades senão dos demais de nosso ambiente.

É impossível recriminar o indivíduo que entre ser um morto-vivo em uma civilização completamente pervertida e adulterada, ou viver para morrer logo numa vida isolada e selvagem prefira a última saída. Contudo em verdadeiras sociedades, a liberdade real de um indivíduo não decai com a convivência dos demais, se amplia. Ou seja o nível de autonomia dos indivíduos depende da qualidade da vida comunitária entre todos.

Aparentemente paradoxal, a autonomia em comunidade, é o fenômeno que define não apenas a identidade de uma comunidade, mas a identidade de cada indivíduo. Mais do que isso, é a sociedade e a socibilização que faz do ente, pessoa dotada de liberdade. É um fenômeno reiterado, a coletividade gera a individualidade de cada indivíduo livre, e a livre interação entre todos indivíduos compõe a coletividade.

De fato o indivíduo dentro ou fora da sociedade é apenas um ente, uma peça ou parte do meio ambiente a medida que é obrigado apenas a agir e reagir com o intuito de manter sua existência, seja sendo obrigado a lutar por sua sobrevivência como animal selvagem na natureza, seja sendo obrigado a lutar pela sua sobrevivência como animal domesticado ou não na civilização. O leão não caca porque é livre nem o gamo foge porque tem liberdade.

O elemento essencial da sociedade é libertar o homem desta luta de todos contra todos, e de cada um contra a natureza, estabelecendo um estado de cooperação mutua, uma nova condição humana e humanizante onde a insegurança é tanto menor quanto maior é a liberdade de cada indivíduo, e maior é a liberdade de cada indivíduo quanto maior é o nível de segurança que este estado de cooperação e proteção social proporciona a todos.

Em outras palavras quanto melhor a vida social e o grau de cooperação, maior é o nível de segurança que todos desfrutam e maior é o grau de liberdade, contudo uma sociedade, não existe sem um contrato social onde a associação voluntária de todos em torno da garantia de um bem comum para todos. Ou sem seja sem liberdade individual não há comunidade e sem comunidade não há segurança social, e sem segurança social não há liberdade real para nenhum indivíduo, mesmo aos privilegiados, afinal de contas permanece o estado de medo original de perda ou tomada de seus privilégios, independente se estes são justos ou injustos.

A verdadeira liberdade não é não a condição do indivíduo livre do medos, privações, compulsões, obsessões, repressões e opressões, de outros sobre si, ou de si para si, mas o estado de razoável segurança ou certeza de que de se está e permanecerá livre destas violências e privações.

Libertar-se é emancipar-se não dos demais indivíduos livres, mas tanto dos estados naturais de privação quanto dos artificiais de dominação. Emancipar-se é tornar-se não apenas indivíduo plenamente livre, autônomo. A emancipação é o processo de construção da autonomia, um processo de libertação de todas as condições de privação e dominação que impedem o florescimento da livre iniciativa, vontade e consciência, que impede a própria transformação do ente em pessoa livre. Logo ser livre não é abandonar a vida em sociedade, mas poder tomar parte voluntariamente de uma, e pertencer a uma comunidade não é renunciar a sua vontade própria, mas participar da construção do espaço onde é possível exercê-la.

A interação social não gera apenas a identidade coletiva, a rede social de relações pessoais gera a própria identidade do indivíduo que se insere nesta comunidade.
A comunidade é o a rede formada a parte do conjunto de interações entre indivíduos autônomos E a autonomia é o estado de liberdade plena gerado a partir da livre interação entre estes indivíduos em comunidade.

O ente existe per se, porem sua identidade individual não se define isoladamente nem se constitui em isolamento ou confinamento, dentro ou fora das sociedades, mas pelo conjunto de relações e interações pessoais e sociais que compõe sua convivência social e comunitária. A identidade de cada indivíduo de define pelo contraste com as demais e da livre interação entre essa diversidade pessoal se compõe a própria indivídualidade. O eu tanto social quanto psicológico carece da interação não apenas com o mundo com o outro para se formar. E o eu verdadeiramente livre, sem carência de poder ou medo de ser é aquele que se forma não apenas pela interação com o outro, mas pela conexão com o próximo.

A coletividade e a individualidade assim como a liberdade e segurança não são elementos opostos, mas fenômenos interligados e que se geram e sustentam simbioticamente em rede. Sendo a coletividade o conjunto de indivíduos autônomos. E a individualidade o fenômeno da autonomia gerado na coletividade. Quanto maior a liberdade individual mais forte é o coletivo, e quanto mais coesos e solidários são os indivíduos mais forte é sua liberdade.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Microcrédito por Renda Básica Garantida

Desde nosso primeiro relatório sobre a renda básica de cidadania na comunidade de Quatinga Velho, já havíamos aventado a possibilidade de trabalhar a renda básica em conjunto com o microcrédito. O fato de algumas famílias terem aproveitado a renda básica como se fosse um microcrédito indicara esta possibilidade.
No anexo ao primeiro relatório da RBC já proporíamos o que viria a ser o Banco Social: microcrédito e renda básica em simbiose. A renda básica provendo a demanda e o microcrédito a atendendo, e vice-versa. Propondo ainda a moeda social como potencializador deste ciclo de desenvolvimento para emancipar da comunidade. Culminando no momento em que a comunidade teria condições de bancar sua própria rede de seguridade, ou especificamente, pagar a renda básica para todos na comunidade com o rendimento de suas próprias economias.
Próximo de completar 3 anos de projeto a tendência permanece. Agora que finalmente conseguimos capitalizar o fundo que garantirá a provisão da RBC em QV podemos enfim aproveitar todo esse potencial fiduciário e introduzir o microcrédito.
Diferente da RBG, o microcrédito já tem uma base teórico-experimental razoável e até mesmo um paradigma consolidado com o Grammen de M.Yunus. O Brasil que já tem inclusive um marco legal estabelecido, que se por um lado regula, por outro também engessa o que talvez seja o bem mais valioso do empreendedorismo: a inovação. Muitas inovações em economia solidária quando não são simplesmente proibidas são inviabilizadas por normas que vão do desnecessário ao contraprodutivo. Vai assim o Brasil perdendo a chance de se livrar dos vícios e idiossincrasias históricos ligados às burocracias e autocracias.
Entretanto não nos percamos nestas regras, nem fiquemos nos lamentando. Sem segui-las nem desobedecê-las apenas empreendamos. Neste sentido, o que apresentaremos aqui talvez não seja exatamente aquilo que se costuma referir pelo termo microcrédito, mas é em essência, finalidade, moralidade, perfeitamente condizente com o espírito e da economia solidária e das microfinanças. E pode ainda sim ser classificado como microcrédito, se este for definido como:
• O crédito de pequena monta;
• de juros baixos;
• dirigido às pessoas que não tem acesso ao sistema financeiro tradicional por não possuem capital, ou sem efemismos, os pobres.
Nossa proposição se encaixa nesta definição. Contudo durante nossa experimentação não aplicaremos os juros. Embora haja arranjos legais onde essa aplicação seria possível, tal engenharia jurídica por si nada agregaria a nossa finalidade social, enquanto a ausência de juros (ou juros = zero) embora seja um grave obstáculo à sustentabilidade do empreendimento, não o é da experiência e da replicabilidade do modelo, lembrando que existe outras exemplos a serem estudados para recompor ou ampliar o capital que não necessariamente passam pelo instrumento dos juros, vide as finanças islâmicas por exemplo.
Isto posto, vamos à proposta:
O microcrédito que será disponibilizado não se dará propriamente como um empréstimo, mas sim como uma espécie de adiantamento de n parcelas da renda básica que já são pagas mensalmente dentro de comunidade segurada por uma renda básica garantida, no caso, Quatinga Velho. Tais parcelas serão restituídas automaticamente durante o pagamento das rendas básicas conforme valor definido pelo próprio tomador do adiantamento ou empréstimo, empregando uma parte da renda básica a ser paga.
Embora esse capital advenha do pagamento de um direito, não deixa também de ser um credito concedido. Em razão de:
• Não ser um valor concedido do indivíduo para si mesmo, mas da comunidade para o indivíduo. De A para B.
• Não estar o montante a ser restituído indexado ao valor da renda básica. Seu montante pode ou não corresponder ao valor de um adiantamento da renda básica no período da duração da sua restituição. Ou seja o indivíduo deve x reais e não x rendas básicas.
Contudo há um diferencial, positivo em relação ao microcrédito convencional a insolvência e possibilidade de inadimplência é anulada pela própria renda básica garantida. A pessoa tem na própria renda básica a garantia de que terá as condições de pagar pelo empréstimo, dada a natureza incondicional da renda básica.
Mas há que se ter cuidado. Pois se isso por um lado isto elimina a inadimplência e a pressão da comunidade, por outro se abre a possibilidade do tomador se ver durante o período de pagamento privado de uma percentual importante de sua renda básica.
Tal situação deve ser evitada, mas dentro dos princípios da eficiência, economicidade e liberdade individual. Por isso neste primeiro experimento do microcrédito através da renda básica decidimos implementar um concessão gradual com restituição de médio e longo prazo, isto é, partindo de valores baixos, pagos em parcelas igualmente baixas que comprometam o menor montante possível da renda básica no período. Este “menor montante possível” significa uma restituição que não comprometa a finalidade da renda básica e que ao mesmo tempo seja um capital suficiente a finalidade do microcrédito. Seja esta finalidade a quitação de uma divida com juros abusivos, um pequeno empreendimento, ou mesmo a compra de um produto ou serviço que o tomador deste microcrédito necessário.
É preciso ainda levar em consideração o longo período que uma restituição de pequena monta pode implicar para recompor o capital para novos empréstimos. Pois embora não seja um problema capaz de inviabilizar o sistema, pode torná-lo reduzir sua eficiente na finalidade do desenvolvimento socioeconômico. É portanto uma questão de velocidade de circulação, para a qual adotamos solução símile aos dos sistemas livres, já testada na Brinquedoteca e Biblioteca livres. Nestes sistemas aceleramos a restituição, neste caso a quitação do empréstimo, não pela ameaça de punição, mas sim pelo estímulo a continua reutilização da oportunidade disponível, abrindo a possibilidade de contrair um novo empréstimo imediatamente após a quitacao de um anterior.
Claro que onde existe a cobrança de juros, a quitação do empréstimo já é estimulada pela própria eliminação deste. Porém a possibilidade de adquirir um novo empréstimo de maior monta, ou mesmo o simples fato de poder acessar novamente o crédito, é por si só um estímulo mais do que suficiente para que se quite o empréstimo o mais rapidamente possível.
Ademais tal possibilidade de quitação aumenta em decorrência do próprio incremento do capital gerado a partir do microcrédito. Isto ocorre evidentemente no microcrédito produtivo, mas não exclusivamente neste modelo. Conforme observamos em Quatinga Velho, mesmo um microcrédito aplicado em um bem de consumo, como uma TV, ou um computador, pode representar não só a médio e longo prazo em crescimento das possibilidades socioeconômicas da família, mas também a curto prazo, a medida que o acesso a muitos bens de consumo também aumentam indiretamente as oportunidades e possibilidades produtivas do indivíduo e da comunidade.
Tal incremento não pode ser deduzido diretamente a partir de um estudo particularizado, linear e reduzido. Mas isso não é razão para eliminar essa possibilidade de desenvolvimento do programa. Embora torne evidentemente mais complexo o planejamento do programa de microcrédito ter que trabalhar com tais variáveis, é possível contornar essa dificuldade priorizando os microcréditos não só de menor monta, mas cuja possibilidade de quitação mais rápida sejam mais evidentes.
Deixando-nos abertos para trabalhar durante a experiência com a hipótese de que em sistema de microcrédito que envolve maior numero de empréstimos, o retorno possa ser maior se não condicionado a uma única tipificação de crédito. Talvez não apenas a multiplicação dos beneficiados, mas uma maior diversidade em suas finalidades possa produzir um conjunto muito maior de oportunidades aproveitadas em relação a outros modelos em que as finalidades de créditos concedidos são reduzidos a tipificações enumeradas e controladas.
Assim a preferência pelos denominados microcréditos para produção dentro do programa se darão neste momento pelas limitações dimensionais do sistema, e do reconhecimento de nossa impossibilidade para efetuar o cálculo complexo de previsão das reais possibilidades desenvolvimento da economia local com a diversificação dos microcréditos.
Ademais é possível que tais cálculos sejam não apenas dispensáveis, mas menos efetivos diante de critérios, simples, não-arbitrário e o mais importante: entendidos como justos pela comunidade conforme deliberação democrática. Neste sentido como critério ainda mais simples de elegibilidade, ou melhor, prioridade para o empréstimo, dado que o montante é limitado, sugerimos a adoção do critério mais fácil de ser entendido, aplicado e controlado por democracia direta. Nesta primeira fase do microcrédito iremos priorizar:
i. os microcréditos de menor monta - que salvo exceções atenderiam justamente a sua finalidade, atendendo quem menos têm e proporcionalmente mais precisa. Gerando ainda um retorno mais rápido sem comprometer o orçamento da família.
ii. como critério em eventual desempate: os microcréditos quitados em menos tempo.
Já a preferência, ou melhor prioridade na concessão de novos créditos aqueles que já quitaram seus empréstimos, se dá não apenas como estímulo ou reforço para uma quitação imediata visando reduzir o tempo para recompor o capital , mas também como importante processo de educação financeira essencial para modelos que apostam na livre iniciativa e liberdade dos envolvidos.
Da mesma forma que a gradação nos montantes emprestados, partidos dos valores e restituições mais modestas possíveis não é apenas uma questão de preocupação com o comprometimento e privação de uma renda básica já extremamente modesta , mas prudência que funciona como processo pedagógico - não precisando contar que todos saberão de imediato lidar com o microcrédito. Aqui cabe uma advertência: talvez essa precaução seja absolutamente desnecessária e sejamos mais uma vez surpreendidos pela responsabilidade e capacidade inatas das pessoas (como já o fomos com os sistemas livres e a renda básica). De qualquer forma ao longo do projeto podemos flexibilizar e até mesmo eliminar essas regras se assim se não se mostrarem efetivas.
É importantíssimo frisar que não estamos partindo do princípio de que pessoas não são capazes de identificar, planejar e aplicar adequadamente esse crédito de modo a não passar por condições adversas, mas admitindo a possibilidade que quem jamais teve chance de apreender com a melhor escola que existe, a experimentação, precisa de espaço para aprender com suas tentativas e erros. Processo de desenvolvimento de um potencial natural que antes de tutores precisa de oportunidades para o aprendizado.
Assim, ao partir de montantes e restituições de baixa monta, procuramos reduzir o possível impacto de um microcrédito que mal aplicado pelo tomador não dê um retorno esperado ou mesmo nenhum, de modo que mesmo o erro possa ser absorvido sem prejuízos materiais ao indivíduo, ou ao seu processo de educação financeira. Afinal, de qualquer forma o empréstimo será quitado no prazo original, abrindo nova oportunidade para uma tentativa dentro dos mesmos patamares ou, conforme o entendimento advindo da experiência, em níveis até menores de comprometimento do orçamento.
O conceito é prover um sistema de crédito onde a confiança e iniciativa não seja prejudicada pelos inevitáveis tropeços, e que ao mesmo tempo se constitua em um processo no qual é o tomador de empréstimo que recebe e sente as conseqüências deste processo em um nível adequado as suas condições socioeconômicas e psicológicas, desenvolvendo assim a responsabilidade e preparando-se de fato e naturalmente para assumir compromissos maiores. A isso entendemos como o próprio processo de aprendizado envolvido no programa: a educação como desenvolvimento de potencialidades latentes ou até mesmo bloqueadas pela falta de oportunidade. Oportunidade de aprendizado não apenas para o indivíduo que toma o microcrédito, mas para aquele que o fornece.
Aqui novamente aplicaremos o princípio da democracia direta. Decisão aplicada não na escolha de quem deve ou não deve receber o empréstimo, mas dos níveis de crédito e, sobretudo de um questão importantíssima: o crescimento do capital disponível para o microcrédito. Tudo isso poderia ser facilmente resolvido com o juros conforme deliberação democrática da comunidade, seja com níveis iguais, equitativos, progressivamente menores ou mesmos maiores. Lembrando que neste modelo os juros não são uma “compensação ou recompensa pelo risco”, mas sim um excedente dirigido a manutenção operacional do sistema e crescimento do capital disponível ao microcrédito.
Pode-se ser inclusive que tais finalidades descaracterizem esse pagamento excedente como juros. Porém para não nos perdermos em predefinições, adotaremos em princípio a solução de acrescer o capital por doações dos próprios tomadores de empréstimos. Doações que podem inclusive estar baseadas em percentuais do valor emprestado, sendo doadas mês ao mês ou como se fossem parcelas adicionais após a restituição do empréstimo. Comportando-se exatamente como o pagamento de juros, mas não se caracterizando como tal por uma razão muito simples: seu pagamento é voluntário e jamais se configura como uma dívida ou compromisso de contribuição disfarçado.
O que não impede que a comunidade entre em acordo para que todos contribuam com valores iguais ou equitativos para esse fundo de microcrédito, atrelado ou não aos empréstimos, o que equivaleria neste segundo caso a uma espécie de contribuição associativa para o microcrédito . Ninguém sendo obrigado a contribuir, mas não tendo também a associação o compromisso de emprestar para quem não contribui, ou seja, mutualismo.
O importante aqui será o trabalho informativo. Dado que o crescimento do volume disponível do microcrédito é do interesse dos próprios usuários, a contribuição voluntária é perfeita viável porque condiz aos interesses particulares de cada um na medida da compreensão do fato que o aumento do microcrédito disponível depende da própria de todos. Aqui cabe novamente um paralelo com a Brinquedoteca e Biblioteca Livres, que num dado momento passou a receber doações dos próprios usuários. É obvio que isso não aconteceu em virtude de nenhum cálculo racional utilitarista, mas sim de impulso ou instinto de solidariedade ou mais precisamente de reciprocidade ou gratidão inerentes não apenas ao seres humanos, mas a todos seres vivos dotados de inteligência suficiente para tanto .
Em suma a renda básica não apenas serve de calção e capital para o microcrédito , mas como fonte geradora da demanda a ser atendida pelos microempreendimentos emergentes. Note-se que o pagamento de juros poderia propiciar não apenas o crescimento dos montantes disponíveis ao microcrédito, mas uma maior renda básica, inclusive concomitantemente.
Por exemplo: uma família com 10 membros, que recebe por mês uma renda básica de 30 reais por mês, poderia estar precisando de justamente 300 reais para comprar galinhas e materiais para construir um galinheiro e vender os ovos na vizinhança. Ela poderia tanto decidir pagar esse empréstimo deduzindo três reais de cada renda básica durante 10 meses, ou apenas 1 real durante 30 meses, ou em qualquer arranjo possível considerando:
• a disponibilidade de recursos depositados no fundo;
• e as possibilidades de comprometimento de uma parte da somatória das rendas básicas dos envolvidos.
Independente do sucesso ou não do empreendimento a restituição sempre ocorre na pior das hipóteses dentro no prazo combinado, e se as possibilidades da família tiverem sido bem consideradas, sem nenhuma privação. Dependendo ainda do retorno desse microempreendimento, aqui no caso a venda dos ovos, será sempre interessante para o tomador do microcrédito quitá-lo o mais rapidamente, abrindo nova possibilidade para receber o adiantamento, com mais confiança e experiência para talvez tomar valores maiores do que o primeiro.
Note-se que não apenas famílias poderão usar sua renda básica, mas famílias associadas ou até mesmo toda a comunidade, no caso de um empreendimento coletivo, como a compra de um veículo para uso comunitário, a abertura de um poço, a criação de uma cooperativa de consumo ou produção, ou qualquer outro empreendimento que careça ou passa ser realizado em comum acordo por um grupo.
No momento que estes microempreedimentos formarem uma considerável economia local será possível incrementar estes empréstimos no todo ou em parte através de moeda social. Mas isso é próxima etapa que deverá ainda aguardar as primeiras avaliações do resultado do microcrédito por renda básica e os sempre necessários ajustes que só a experiência pode propiciar a qualquer programa.

Arqueologia do Absoluto

A História como construção do Futuro

Quando o ser humano passou a ter uma mentalidade servil? A relação liderança-subverniência existe nos animais? As relações de poder são sinal de evolução ou corrupção?

No mundo animal as relações podem ser tanto violentas quanto solidárias, contudo não se pode dizer que o fenômeno da servidão e escravidão simplesmente tenha surgido espontaneamente. Eles sempre estiveram presentes como uma alternativa ou estratégia, bem ou mal, sucedidas para a perpetuação das espécies, mas não como conseqüência predeterminada de suas causas.

Tomar o passado como base para o futuro é um uso válido do conhecimento da história, mas para a construção deste conhecimento é necessário a abordagem inversa: estudando o passado como se olhássemos para o futuro. Ao assim proceder não apenas conseguimos nos livrar da falsa impressão que o passado não poderia ter sido diferente, mas sobretudo da maldição da predestinação, na qual as possibilidades do futuro são uma ilusão causada pelo desconhecimento de um futuro que a imagem e semelhança do passado já está definido, cabendo a nós apenas descobri-lo e cumpri-lo.

Nada mais enganoso. Não só devemos não olhar o futuro como se fosse o passado, mas passar a estudar o passado como se fosse o futuro, buscando nos inserir nele como se estivéssemos presente. Esse exercício mental jamais nos dará uma perspectiva perfeita do passado, mas nos permitirá entender que aquilo chamado de presente e tido como inexorável, era naquele momento apenas uma entre tantas possibilidades de futuro. E não porque está foi a escolhida que ela era a única alternativa possível.
O passado é inegavelmente linear, mas não é uma cadeia de causas e conseqüências, as causas explicam as conseqüências, mas o fator determinante são as escolhas dos agentes dotados de vontade que atuam não no campo do desconhecido, mas sim no campo daquilo que precisa ainda ser determinado. De modo que as tomadas de decisão do presente, serão as inexoráveis cadeias de causas e conseqüenciais dos observadores futuros.

A história tomada não como descrição de processos lineares reduzidos, mas sim como descrição sistemas complexos não-deterministicos. Por que? ou melhor para que? Entender a historia como o produto de múltiplos processos de tomadas de decisão individuais e coletivas não serve apenas para compreender o passado, serve acima de tudo para conceber que o futuro não é objeto de previsão ou descoberta, mas de construção.

Futuros Encarcerados

A quebra do predeterminismo não é apenas uma questão metodológica, ela é fundamental para compreensão do fenômeno que nos propomos a entender, pois sendo uma manifestação do mesmo, não poderemos compreende-lo sem superar as limitações que a sua estrutura impõe as abordagens para além da sua perspectiva.
Assim tomando a seleção natural não só dos indivíduos, mas dos coletivos enquanto produto de suas escolhas e estratégias frente as possibilidades, o que vamos pretendemos é levantar uma hipótese que poderia servir de princípio para uma Arqueologia do Absoluto, onde se buscaria não apenas por signos de poder, mas símbolos de um culto ao Poder Total.

Relações de poder e violência sempre existiram. O é num dado momento da espécie humana por conta da capacidade de abstração é a concepção do absoluto, enquanto a noção do poder total, que gera as representação atemporais e temporais do Todo Poderoso, respectivamente Deus e o Estado. Gerando sociedades voltadas para o totalitarismo. E estamos ainda de tal forma imersos nesta condição pervertida de nossa humanidade que se quer nos damos conta de que essa idolatria ao absoluto enquanto processo de desinteligência e desumanização será a perda da nossa humanidade.

Se o comportamento de poder e violência existe na natureza como expressão primitiva de brutalidade, isto explica os atos, comportamentos e condições mais primitivos das pessoas, ou mais propriamente as suas características mais desumanas, contudo não explica o surgimento das características que diferenciam o ser humano das demais espécies, pelo contrário, representam claramente uma contradição da natureza humana.

Assim a pergunta que precisa ser feita é como o ser humano apesar de sua brutalidade e animalidade conseguiu desenvolver suas características humanas? Afinal não foi agredindo e atacando que o ser humano desenvolveu sua extraordinária habilidade de comunicação. Nem foi usando armas que consegui desenvolver sua capacidade de entendimento. As características que nos definem enquanto seres humanos e que nos permitiram desenvolver aquilo que denominamos cultura. ou seja desenvolver a inteligência ao invés de mandíbulas e dentes mais afiados é produto de uma estratégia evolutiva a que chamamos inteligência, que na própria origem da palavra significa capacidade de intercomunicação.

Cooperação-Competitiva

Assim a primeira pergunta não é exatamente o que aconteceu com a HUMANIDADE de modo que esta veio a perverter-se, se voltando para animalidade não apenas com uma força inédita mas com uma estupidez sem precedentes entre todos os animais. A pergunta é como o ser humano consegui desenvolver sua humanidade em condições brutais de competição pela vida que jamais cessaram.

Claro que a vida não pode ser reduzida a mera luta violenta pela sobrevivência num mundo de recursos escassos. A abundância também ocorre permitindo o desenvolvimento de novas capacidades. Ademais a cooperação também é uma característica que pode surgir na escassez. Assim como a abundância mediante a concorrência. Relacionar a competição como única estratégia necessária onde existe escassez, relegando a cooperação apenas para situações de abundância é uma falácia tão grande quanto pressupor que a competitividade não possa e deva surgir na abundância e que a cooperação é pelo contrário a melhor estratégia na extrema escassez. De fato pretendemos demonstrar que a evolução humana está baseada na combinação destes dois elementos, cooperação e competição, para formação de uma estratégia complexa. Uma estratégia a qual denominamos cooperação-competitiva, onde a ordem dos fatores altera o produto já que a característica fundamental desta estratégia é a criação de um estado permanente de abundância onde se pode competir pelo desenvolvimento e não pela mera sobrevivência, através da cooperação para manter esse estado.

Baseada na teoria do jogos, temos que a melhor estratégia individual para qualquer jogador é vencer sem quebrar o jogo, o que leva todos competidores a cooperar naquilo que é seu interesse comum: a existência das condições onde existem vencedores e perdedores, e não presas e predadores. Assim na famosa frase “o importante é competir” deve se ler dois princípios:

• Que deve se competir para vencer.
• E que deve se competir cooperando para a própria existência do jogo.
Sendo o ultimo princípio enunciado o primordial a ser respeitado sob pena de não haver lugar para o segundo. Quando os jogadores perdem a noção deste princípio essencial, base da sua inteligência coletiva, o sistema colapsa.

Autonomia

Assim o processo evolutivo humano ocorre a cada ato de renuncia a violência e a brutalidade, em pro da concorrência para atingir um mesmo objetivo, uma relação ao mesmo tempo cooperativa e competitiva. Essa correlação permitiu que o ser humano desenvolvesse uma capacidade inédita de atuação coletiva, conseguindo atuar com unidade e sem contudo perder sua individualidade, isto é, não apenas em união geradora de massas, mas em comunhão formadoras de indivíduos autônomos.

Aliás é dentro da comunhão que estão as condições para o surgimento desta nova noção de individualidade, que escapa da dicotomia primitiva de: ou obedecer a vontade geral; ou viver isolado de todos. de acordo com esta dicotomia, em comunidade o homem é livre das privações naturais, mas prisioneiro da obediência a vontade comum, ou seja, há muita coisa para se fazer, mas poucas são permitidas. Por outro lado, na vida selvagem se é livre da obediência a sociedade, mas prisioneiro das privações inerentes a um ser sozinho, onde se pode fazer o que se quiser, mas não se tem condições de fazer quase nada.

A individualidade é produto destas novas sociedades humanas não baseadas na união pelo medo e a cobrança de obediência, mas das sociedades fundadas na comunhão de interesses e baseadas na liberdade e concordância. De modo que quanto mais evoluída e inteligente é a sociedade maior é capacidade dela não apenas de tolerar as diferenças e diversidade de personalidades e comportamentos, mas aproveitá-los para a geração do bem comum. Assim como a diversidade genética aumenta as chances de sobrevivência de um grupo, a diversidade cultural aumenta as das sociedades.

Liberdade em Rede

Assim a liberdade individual não é produto da segregação ou separação dos indivíduos de uma coletividade, mas do desenvolvimento e afirmação de suas características diversas e particulares que só fazem sentido dentro uma coletividade,isto é, que só se tornam particulares justamente pelo contraste ou relação com as particularidades de todos os demais. O indivíduo emerge, portanto do coletivo como a afirmação de um nodo dentro de uma rede. Fora da rede ele, sem a possibilidade de produzir as conexões ou relações que constituem aquilo que o define, perde sua identidade e na natureza se torna parte do meio, perdendo toda e qualquer possibilidade de apresentar um comportamento diferente daquele que é o necessário para a sua sobrevivência.

Vontade

Via de regra em qualquer estado natural ou artificial onde o indivíduo perde a capacidade de manifestar sua vontade e passa ser governado por causas e conseqüências, ele deixa de ser indivíduo para ser parte do meio. É uma parte do sistema e do seu meio ambiente regida por leis naturais ou artificial que comandam seu comportamento previsível. Afinal dá para se ter uma boa idéia das conseqüência de se chutar uma pedra ou leão, mas ao chutar de um ser dotado com a vontade humana podemos esperar as mais diferentes reações, até mesmo a incrível, e claro rara, não-reação. A vontade, antes de ser uma força criativa, é uma força primordial de toda evolução, através da não-violência e desobediência: A primeira essencial ao desenvolvimento da inteligência; a segunda da liberdade, ambas em conjunto são a base da superação da força bruta e superstição, a transição da fase da ciência para a fase da consciência, isto é, a superação do “eu sei”, para a percepção do “não sei’. A principal diferença cognitiva de uma evolução humana ainda em processo: a capacidade de lidar com sistemas complexos baseados na incerteza.

Da Ciência e Consciência

Ora essa capacidade como qualquer outra não se desenvolve de forma homogênea e para sua emergência será necessário superar primeiro aquilo a que denominamos de culto ao Absoluto que impede que lidemos como múltiplas verdades, ainda que não necessariamente relativas, mas complexas.

O culto nos impede de compreender a realidade enquanto a própria complexidade, que não pode ser reduzida nem aquilo que é atualmente conhecido, nem ao previsto, mas que precisa ser trabalhada cognitivamente tanto com uma quantidade sem fim de elementos desconhecidos a serem descobertos, quanto com os próprios limites epistemológicos tanto da cognição quanto da intelecção, desenvolvida, portanto como sistemas de compreensão capaz de lidar com a realidade sem pressuposições de que conhecemos ou podemos conhecer tudo e o todo, assim como trabalhando também com aquilo que só pode ser conhecido subjetivamente.

Assim a superação da ciência pela consciência que se dá na mente humana precisa ser trazida a realidade para dentro das relações humanas, espelhadas em nossas sociedades. De modo que não sejamos apenas seres dotados de humanidade, mas que convivamos como Humanidade. Se individualmente somos seres inteligentes, coletivamente não passamos ainda da infância da humanidade, se é que vamos sair dela, como comprova nossos sistemas econômicos baseados em psicologia infantil e infantilizante.

Para construir sociedades humanas e inteligentes e finalmente podermos nos definir realmente como Humanidade, precisamos trazer o homem de volta de seu delírio epistemológico de onipotência e onisciência, motivado por seus anseios infantis de imortalidade, mantidos paradoxalmente por uma cultura de guerra e morte. Precisamos por um fim ao esse idolatria ao poder total.

Culto ao absoluto

Assim a segunda pergunta é exatamente quando o mesmo ser que desenvolveu sua humanidade através da não-violência, da desobediência ou inconformismo e sobretudo através da cooperação-competitiva se tornando inteligente e solidário, perdeu a noção de sua essência e não apenas voltou a apresentar um comportamento brutal e violento, mas com níveis de predação e individualismo que jamais poderiam ocorrer em condições primitivas, sob pena de auto-extinção, naquilo que não pode ser mais chamado apenas de brutalidade, mas sim de maldade.

O que praticamente equivale a perguntar quando o homem inventou a Maldade?
Pode-se dizer que a maldade é um ato de estupidez ou violência cometida por um ser que utiliza sua inteligência para promover ações danosas a outros. É estúpida não apenas porque seu uso generalizado implica a longo prazo dentro de uma sistema complexo como a realidade em prejuízo a todos incluso do próprio agente, mas porque conforme demonstramos carece justamente do componente solidário que determina o desenvolvimento da inteligência, fazendo que esse comportamento promova a destruição tanto do sistema quanto o retrocesso do desenvolvimento humano ou inteligente.
Porque fazemos isso? Ou porque constituímos sociedades tão estupidamente egoístas, ou estúpidas?

A Maldade

Não podemos dizer que esse é um estagio necessário a evolução humana. Porque conforme veremos preconceber a evolução como uma linha única já é um produto de valores absolutos.Contudo o culto absoluto ou o totalitarismo é uma armadilha fácil de se cair perante a força da união.

É evidente que o nível de coesão dos grupos e a capacidade destes de atuar como uma unidade ordenada representou uma evidente vantagem evolutiva, pelo simples diferença evidente que existe entre ter um aliado ao invés de um inimigo. Contudo uma unidade antes de se manifestar na realidade precisa existir como uma concepção, e a na concepção desta unidade reside a diferença entre o Bem Comum e o Mal. O bem como uma unidade promovida em harmonia de pluralidade, ou enquanto um sistema de equilíbrio e cooperação da maior diversidade possível. E o mal como a unidade enquanto supremacia da singularidade obtida desde a supressão das diferença até o extermínio dos diferentes. O bem como a força criativa onde o Uno é a multiplicação e diversificação e renovação da existência, Universo. O mal como força destrutiva onde o Uno é obtido por anulação do outro, eliminação do novo e reprodução ou eternalização do mesmo. O Bem, vida e morte, o mal a eternalização do mesmo, mortos-vivos, mumificação, o anseio da juventude eterna e imortalidade.O Bem é a unidade de complexidade e multiplicidade, variedade e diversidade crescentes. O mal a unidade simplificada, reduzida e uniformizada na noção do único, absoluto, e verdadeiro.

A verdade

A verdade enunciada enquanto exclusão de diferentes perspectivas, mas de diferentes percepções, cognição e formas de intelecção, não apenas como correspondência da realidade, mas como única descrição, percepção e pensamento possível para a realidade. Idéia que pretensamente a única não se afirma, e sim demanda a exclusão de todas as demais.

Mas isso não é ilógico? A verdade de A não implica na falsidade ao menos da negação A? Como pode a afirmação e a negação de algo não serem excludentes?

A resposta é: bastando não tomar como a realidade o sistema epistemológico onde algo é afirmado ou negado como a expressão única da realidade. O que não apenas permite que se expresse o mesmo de diferentes formas, mas permite que se componham noções de realidade com uma compreensão da realidade com complexidade proporcional a multiplicidade, variedade e porque não contrariedade de intelecções da verdade, que integradas e não reduzidas formam uma rede de verdades complexas, muito mais próxima do real, conquanto não apenas trabalhe com essa diversidade intelectual mas seja capaz de trabalhar como incógnitas das possibilidades de compreensão não apenas a incerteza, mas o desconhecido. Compondo e ampliando a partir deste processo epistemológico não apenas o conhecimento, mas o própria compreensão do incognoscível.

Os juízos

Contudo o culto ao absoluto não é um produto do raciocínio, mas um sentimento que gera a racionalização da verdade como juízo. A verdade e a falsidade são produto do julgamento, são sentenças promulgadas por uma mente tribunal soberana sobre o que se dá aos seus sentidos de acordo um mundo que a imagem e semelhança do homem também é governado por forças e leis. E o saber passa a se compor como juízo de verdade, superior a própria realidade, negando como prova aquilo que não esta previsto na lei, e negando como real aquilo que a lei não prevê. O saber absoluto se compõe não portanto do reconhecimento daquilo que se conhece e desconhece, mas sobretudo da negação do desconhecido, chamando de Ciência a forma mais absoluta de ignorância. O processo de sistemática negação da descoberta. Não é a toa que a mudança de todo paradigma cientifico é antes uma mudança mais política do que cientifica.

O poder

Na essência do culto ao absoluto está a repressão da liberdade geradora de um estado psicológico de desejo e idolatria ao poder que se dissemina como uma doença. Onde o indivíduo outrora reprimido extravasa sua vontade de ser e realizar no outro que um dia irá compensar sua frustração dentro das mesmas relação de poder.

Como o desejo de poder fora de si, se converte em verdadeira idolatria ao poder?
Essa é uma questão que vale uma reflexão mais profunda. Por aqui nos resumiremos afirmar que o culto ao absoluto é a maior perversão da humanidade e a própria perversão dos valores humanos mais fundamentais: A comunidade pervertida em totalidade. O entendimento em julgamento. A liberdade em poder. Neste mundo a incerteza é confundida com a insegurança. A sabedoria com autoridade. E a proteção com dominação. Produzindo a noção de a vida que não tem um destino predeterminado não é uma vida com sentido. Quando a indeterminação é a própria dádiva da vida, que permite a todo ser dotado de vontade e liberdade para exercê-la decidir qual sentido dará a sua própria vida – oportunidade que é a própria essência e razão da existência. Assim o ser liberto do culto ao absoluto, a fonte de uma angustia existencial da falta de sentido da vida, se torna o indescritível estado de espírito do ser verdadeiramente vivente que busca e cria com toda sua vontade o significado à vida.

Toda a evolução e manifestação material é produto desta decisão. E não há um ser no Universo que não seja produto desta vontade, e nenhuma forma material que não seja a manifestação deste espírito, a Liberdade: o princípio, meio e sentido da vida.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Microcrédito via Renda Básica de Cidadania

Desde nosso primeiro relatório sobre os resultados do pagamento de uma Renda Básica de Cidadania em uma comunidade já havíamos aventado a possibilidade de trabalhar-se a Renda Básica junto com o microcrédito.
O fato de algumas famílias terem aproveitado a RB como se fosse um microcrédito já era por si indicio suficiente da viabilidade de se aplicá-las em conjunto.



Propusemos no anexo ao primeiro relatório da RBC o que viria a ser o Banco Social, onde o microcrédito e a renda básica aliada simbioticamente a renda básica provendo a demanda e o microcrédito vindo a atendê-la e neste círculo de desenvolvimento viabilizar a emancipação da comunidade. Emancipação entendida como o momento em que a comunidade teria condições de bancar sua própria rede de seguridade, ou mais especificamente pagar a renda básica para todos com o rendimento de suas economias. Utilizando como elemento otimizador deste processo a moeda social.



Próximo de completar 3 anos de projeto a tendência permanece, agora que finalmente conseguimos capitalizar o fundo que garantirá a provisão da RBC em QV podemos enfim aproveitar todo esse potencial fiduciário e introduzir o microcrédito.



Ao contrário da RBC a qual só possuíamos referenciais teóricos, o microcrédito tem uma base experimental razoável e até mesmo um paradigma consolidado no Grameen de M.Yunus. No Brasil que já tem inclusive um marco legal estabelecido, que se por um lado regula por outro mais engessa o que talvez seja o bem mais valioso do empreendedorismo, a inovação. E embora recentemente o marco legal esteja mais próximo dos propósitos morais e econômicos do microcrédito ao reduzindo o juros anos de 20 para 8 por cento ainda sim está muito longe do paradigma das microfinanças e de economia solidária. Muitas inovações neste campo quando não são simplesmente proibidas são tornadas proibitivas por normas que vão do desnecessário ao contraprodutivo. Vai assim o Brasil perdendo a chance de se livrar dos vícios e idiossincrasias históricos ligados as burocracias e autocracias.



Não vamos nos prender a essas regras, nem ficar chorando por causa delas, vamos empreender sem segui-las nem desobedecê-las. O que significa o que aqui apresentaremos talvez não seja de acordo com a legislação brasileira em vigência naquilo em que esta se refere pelo termo microcrédito, mas que em essência, finalidade, moralidade, condiz perfeitamente ao espírito da economia solidária e a definição do microcrédito globalmente difundida. Aqui sintetizada como:
• O crédito de pequena monta;
• de juros baixos;
• dirigido às pessoas que não tem acesso ao sistema financeiro tradicional justamente por não possuem capital para dar em garantia, ou seja, pobres.



Como veremos a nossa proposição se encaixa perfeitamente nesta definição, contudo durante nossa experimentação não aplicaremos os juros, em respeito à legislação brasileira. Embora haja arranjos legais onde essa aplicação seria possível, tal engenharia jurídica por si nada agregaria a nossa finalidade social, enquanto a ausência de juros ou juros 0 embora seja um grave obstáculo à sustentabilidade do empreendimento, não o é da experiência e da sua replicabilidade do modelo, mais facilmente reconstituído em territórios sem os mesmos impedimentos ou ao menos com menor burocracia.



Tudo isto devidamente posto vamos a proposta:
O microcrédito que será disponibilizado não se dará propriamente como um empréstimo, mas sim como uma espécie de adiantamento de n parcelas da renda básica que já são pagas mensalmente dentro de comunidade protegida por uma renda básica garantida, aqui Quatinga Velho. Sendo estas parcelas restituídas automaticamente no pagamento das rendas básicas no período conforme valor definido pelo próprio tomador do adiantamento ou empréstimo.



Embora esse adiantamento seja de um capital que devido como direito, não deixa de ser um crédito concedido por:
• Não ser um valor concedido do indivíduo para si mesmo, mas da comunidade para o indivíduo. De A para B.
• Não estar o valor a ser restituído indexado ao valor da renda básica. Logo seu montante podendo não corresponder ao valor de um adiantamento da renda básica no período da duração da sua restituição.



Contudo há um diferencial, porém positivo, a insolvência e possibilidade de inadimplência é anulada pela própria renda básica garantida. A pessoa tem na própria renda básica a garantia que terá condições de pagar pelo empréstimo, dada a garantia incondicional da renda básica provida como direito.



Mas há que se tomar cuidado. Pois se isso por um lado elimina a inadimplência, ou conflitos e pressão da comunidade sobre, abre a possibilidade do tomador que não conseguir utilizar esse capital adequadamente se ver durante o período privado de um percentual de sua renda básica!



Tal situação deve ser evitada, e evitada seguindo os princípios da eficiência, economicidade e liberdade individual. Por isso neste primeiro experimento do microcrédito através da renda básica decidimos implementar uma concessão gradual com restituição de médio e longo prazo, isto é, partindo de valores baixos, pagos em parcelas igualmente baixos que comprometam o menor montante possível da renda básica no período. Este “possível” significa a relação entre uma restituição que não comprometa a finalidade da renda básica e um montante que represente um capital necessário a finalidade do microcrédito, seja ele a quitação de uma dívida com juros abusivos, um pequeno empreendimento, ou mesmo a compra de um produto ou serviço que o tomador deste microcrédito necessário.



É preciso ainda levar em consideração o longo período que uma restituição de pequena monta pode implicar para recompor o capital para novos empréstimos. Pois embora não seja um problema capaz de inviabilizar o sistema, pode torná-lo pouco eficiente para a finalidade do desenvolvimento socioeconômico. Tratando-se, portanto não de uma questão estrutural, mas de velocidade de circulação, símile aos sistemas livres já aplicados a Brinquedoteca e Biblioteca livres, podemos acelerar a restituição, ou nesse caso a quitação do empréstimo, pela possibilidade imediata de contrair um novo.



Claro que onde existe a cobrança de juros, a quitação do empréstimo já é estimulada pela própria eliminação deste. Porém a possibilidade de adquirir um novo empréstimo de maior monta, ou mesmo o simples fato de poder acessar novamente o crédito, é mais do que suficiente para que havendo a possibilidade se quite o mais rapidamente possível o empréstimo. Tal possibilidade de quitação pode ser decorrência do próprio incremento de renda gerado a partir do microcrédito.



Numa relação evidente no microcrédito produtivo orientado, mas não exclusiva deste modelo. Conforme observamos em Quatinga Velho, mesmo um microcrédito aplicado em um bem de consumo, como uma TV, ou melhor ainda um computador, pode representar não apenas a médio e longo prazo num incremento nas possibilidades socioeconômicas da família, mas inclusive a curto prazo a medida que o simples acesso a informação! Tal incremento não pode ser deduzido a partir de um estudo de caso linear e reduzido, mas isso não é razão para eliminar essa possibilidade de desenvolvimento de um sistema, embora torne evidentemente mais complexo o planejamento do programa de microcrédito ter que trabalhar com tais variáveis, o que ao menos em princípio nos leva a optar por dar prioridade para os microcréditos cujo montante envolvido apenas de menor monta, mas cuja possibilidade de quitação adiantada seja mais evidentes.



Deixando-nos abertos para trabalhar durante a experiência com a hipótese de que em sistema de microcrédito que envolve maior número de empréstimos, o retorno possa ser maior se não condicionado a uma única, ou pouca tipificação de crédito. Isto é que não apenas a multiplicação dos beneficiados, mas uma maior diversidade em suas finalidades possa produzir um conjunto muito maior de oportunidades aproveitadas em relação ao modelo em que estas são reduzidas as tipificações enumeradas e controladas.



Assim a preferência pelos denominados microcréditos para produção dentro do programa se darão neste momento pelas limitações dimensionais do sistema, e do reconhecimento de nossa impossibilidade para efetuar o cálculo complexo de previsão das reais possibilidades desenvolvimento da economia local com a diversificação dos microcréditos.Entretanto talvez tais cálculos sejam não apenas dispensáveis, mas menos efitetivos diante de critérios, simples, não-arbitrário e sobretudo entendidos como justo pela comunidade em decisão democrática.



Neste sentido como critério ainda mais simples de elegibilidade, ou melhor, prioridade para o empréstimo, dado que o montante é limitado, sugerimos a adoção do critério mais fácil de ser entendido, aplicado e controlado por democracia direta. Nesta primeira fase do microcrédito iremos priorizar:
• Os microcréditos de menor monta - que salvo exceções atenderiam justamente a sua finalidade, atendendo quem menos têm e proporcionalmente mais precisa. Gerando ainda um retorno mais rápido sem comprometer o orçamento da família.
• como critério em eventual desempate: os microcréditos quitados em menos tempo.



Já a preferência, ou melhor prioridade na concessão de novos créditos serão dentro dos mesmo critérios acima descrito, para aqueles que já quitaram seus empréstimos. Isto não apenas como estímulo ou reforço para uma quitação imediata visando reduzir a espera para o retorno do capital , mas também como importante processo de educação financeira essencial para modelos que apostam na livre iniciativa e liberdade dos envolvidos.



Da mesma forma que a gradação nos montantes emprestados, partidos dos valores e restituições mais modestas possíveis não é apenas uma questão de preocupação com o comprometimento e privação de uma renda básica já extremamente modesta mas prudência que funciona como processo pedagógico a medida que não contamos que todos saberão de imediato lidar com o microcrédito.



Aqui cabe uma advertência, talvez essa precaução seja absolutamente desnecessária e sejamos mais uma vez surpreendidos como já o fomos com os sistemas livres e a renda básica. Contudo, ao longo do projeto podemos flexibilizar e até mesmo eliminar essas regras se assim se não se mostrarem efetivas.



Por outro lado é importantíssimo ressalvar que não estamos partindo do princípio de que pessoas não são capazes de identificar, planejar e aplicar adequadamente esse crédito de modo a não passar por condições adversas, mas admitindo a possibilidade que muitos que jamais tiveram chance de apreender com a melhor escola que existe a da experimentação, onde a tentativa e erro são parte não apenas integrante do processo de desenvolvimento deste potencial que entendemos que não precisa de tutores mas de oportunidade de aprendizado.


Assim ao partir de montantes e restituições de baixa monta, procuramos reduzir o possível impacto de um microcrédito que mal aplicado pelo tomador não dê um retorno esperado ou mesmo nenhum, de modo que mesmo o erro possa ser absorvido sem prejuízos materiais ao indivíduo, ou ao seu processo de educação financeira. Afinal, de qualquer forma na pior das hipóteses o empréstimo será quitado no prazo original, abrindo nova oportunidade para uma tentativa dentro dos mesmos patamares ou conforme o entendimento provido pela experiência em níveis menores de comprometimento do seu orçamento.



O conceito é prover um sistema de crédito onde a confiança e iniciativa não sejam prejudicadas pelos inevitáveis tropeços, e que ao mesmo tempo se constitua em um processo no qual é o tomador de empréstimo que colhe as conseqüências do processo em um nível adequado as suas condições socioeconômicas e psicológicas, desenvolvendo assim a responsabilidade e preparando-o de fato e naturalmente para assumir compromissos maiores. A isso entendemos como o próprio processo de aprendizado envolvido no programa: a educação como desenvolvimento de potencialidades latentes ou até mesmo bloqueadas pela falta de oportunidade pela simples familiarização com o sistema aplicado vigente, no caso o próprio programa de microcrédito calçado na renda básica garantida. Oportunidade de aprendizado não apenas para o indivíduo que toma o microcrédito, mas para aquele que o fornece, a comunidade.



Aqui novamente aplicaremos o princípio da democracia direta, não na escolha de quem deve ou não deve receber o empréstimo, mas dos níveis de crédito e, sobretudo de um questão importantíssima: o crescimento do capital disponível para o microcrédito. Claro isso poderia ser facilmente resolvido com os juros conforme deliberação democrática da comunidade seja com níveis iguais, equitativos, progressivamente menores ou mesmos maiores. Lembrando que neste modelo os juros não são uma “compensação ou recompensa pelo risco”, mas sim um excedente dirigido a manutenção operacional do sistema e crescimento do capital disponível ao microcrédito.



Pode-se ser inclusive do entendimento jurídico que tais finalidades descaracterizem esse pagamento excedente como juros. Porém para não nos perdermos neste debate, o capital será acrescido por doações. Doações estas que serão propostas inclusive aos tomadores de empréstimo que podem inclusive estar baseadas em percentuais do valor emprestado, sendo doadas mês ao mês ou como se fossem parcelas adicionais após a restituição do empréstimo. Comportando-se exatamente como o pagamento de juros, mas não se caracterizando como tal por uma razão muito simples: seu pagamento é voluntário e jamais se configura como uma dívida ou compromisso de contribuição.



O que não impede que a comunidade entre em acordo para que todos contribuam com valores iguais ou equitativos para esse fundo de microcrédito, atrelado ou não aos empréstimos, o que equivaleria neste segundo caso a uma espécie de taxa de uma associação de microcrédito.



O importante aqui é novamente o trabalho informativo. Dado que o crescimento do volume disponível do microcrédito é do interesse dos próprios usuários, ou seja, a comunidade, a contribuição voluntária é perfeita viável e inclusive condizente aos interesses particulares de todos na medida da compreensão do fato que o aumento do microcrédito disponível dependerá em parte da própria contribuição da comunidade. Aqui cabe novamente em um paralelo com a Brinquedoteca e Biblioteca Livres, que num dado momento passou a receber doações dos próprios usuários. É obvio que isso não aconteceu em virtude de nenhum cálculo racional utilitarista, mas sim de impulso ou instinto de solidariedade ou mais precisamente de reciprocidade ou gratidão inerentes não apenas ao seres humanos, mas a todos seres vivos dotados de suficiente inteligência.



Em síntese a renda básica não apenas serve de calção e capital para o microcrédito , mas como geradora da demanda a ser atendida pelos microempreendimentos emergentes. Note-se que o pagamento de juros poderia propiciar não apenas o crescimento dos montantes disponíveis ao microcrédito, mas uma maior renda básica, inclusive concomitantemente.



Por exemplo: uma família com 10 membros, que recebe por mês uma renda básica de 30 reais por mês, poderia estar precisando de justamente 300 reais para comprar galinhas e materiais para construir um galinheiro e vender os ovos na vizinhança. Ela poderia tanto decidir pagar esse empréstimo deduzindo três reais de cada renda básica durante 10 meses, ou apenas 1 real durante 30 meses, ou em qualquer arranjo possível considerando:
• a disponibilidade de recursos depositados no fundo;
• e as possibilidades de comprometimento de uma parte da somatória das rendas básicas dos envolvidos.



Independente do sucesso ou não do empreendimento a restituição sempre ocorre e na pior das hipóteses dentro no prazo combinado, e se as possibilidades da família tiverem sido bem consideradas, sem nenhuma privação. Dependendo ainda do retorno desse microempreendimento, aqui no caso a venda dos ovos, será interessante para o tomador do microcrédito quitá-lo o mais rapidamente, abrindo nova possibilidade para receber o adiantamento, com mais confiança e experiência para talvez tomar valores maiores do que o primeiro.



Note-se que não apenas famílias poderão usar sua renda básica, mas famílias associadas ou até mesmo toda a comunidade, no caso de um empreendimento coletivo, como a compra de um veículo para uso comunitário, a abertura de um poço, a criação de uma cooperativa de consumo ou produção, ou qualquer outro empreendimento que careça ou passa ser realizado em comum acordo por um grupo.



No momento que estes microempreendimentos form
arem uma considerável economia local será possível incrementar estes empréstimos no todo ou em parte através de moeda social. Mas isso é próxima etapa que devera ainda aguardar as primeiras avaliações do resultado do microcrédito por renda básica e os sempre necessários ajustes que só a experiência pode propiciar a qualquer programa.


__________






A variação é possível, pois embora a RB não seja um dividendo social variável mês a mês, pode esta sim ser alterada no período para se adequar ao que é considerado e deliberado democraticamente como correspondente ao básico.
Usamos a palavra evidente e não maior, de acordo com a nossa concepção epistemológica que não maior probabilidade de ocorrência ou verdade para aquilo que é conhecido ou mais facilmente compreendido em detrimento do que é mais complexo, ou desconhecido, e, portanto não inferindo para o desconhecido ou complexo, menor possibilidade de ocorrência nem muito menos falsidade.
Retorno aqui não apenas de velocidade do sistema, mas de rentabilidade naqueles que puderem aplicar juros.
Note que a velocidade do sistema perde significância na recomposição a medida que a rotação dos empréstimos aumenta, sendo uma questão fundamental apenas no início onde o capital disponível é limitado tanto em reservas quanto em circulação.
E extremamente modesta aqui quer dizer uma renda básica que começa a beirar o insuficiente para receber esse nome. Os 30 reais estão no limiar de renda básica. Seria muito melhor iniciar o projeto quando tivéssemos uma renda básica de 50 reais, contudo se nossa política fosse a de esperar condições ideais para agir, não existiria sequer a renda básica.
Logo o papel do orientador não é o de ensinar, conduzir, ou sequer induzir o processo de aprendizagem mas sim de maximizar o proveito da oportunidade de aprendizado, a experiência.
Que fique bem claro: do entendimento do tomador de empréstimo.
Não o é. Graças novamente por seu caráter voluntario. Taxas são por definição compulsórias.
Quase ninguém tem a consciência de que quando compra um produto para ajudar alguém que bate em sua porta esta contribuindo não apenas com o vendedor, mas consigo mesmo, a medida que quando compra não apenas quando precisa mas quando pode, está reduzindo os preços dentro de suas imediações. E não precisa ter a solidariedade, permite aqui a sobrevivência de um concorrência que desapareceria sem ela, e o faria refém da conveniência, afinal quem só compra quando lhe é conveniente pagará, e caro esta conveniência. A solidariedade é essencial ao equilíbrio natural dos mercados, sem elas os custos explodiram, o que talvez explique que no exato momento em que escrevo estas linhas é possível encontrar banana mais barata em alguns lugares de Nova Iorque do que em São Paulo!
Havendo reservas para tanto.
Ou contribuições voluntarias equitativas e proporcionais com efeito de.
Sempre dentro do entendimento de créditos de pequena monta.

BANCO SOCIAL DA RENDA BÁSICA DE CIDADANIA

CAPITAL E LIBERDADE
Se nosso aprendizado nestes 4 anos de busca obstinada pelo desenvolvimento humano pudesse ser resumido a algumas poucas palavras, diríamos que a chave para a transformação social está no Capital e na Liberdade seu perpétuo caminho.
Liberdade real, não o resto da subtração liberal entre “tudo aquilo que posso fazer por minha conta” e “tudo o que não me é proibido por aqueles que me cercam”. A verdadeira liberdade: produto libertário da somatória de capacidades, oportunidades e direitos garantidos a cada indivíduo, multiplicada pelas mesmas liberdades e direitos de (e para) todos os demais .
Isto é Liberdade. Mas e o Capital? Que Capital é esse que procuramos disponibilizar e compartilhar em nossos projetos? Um Capital que não se resume a renda; que não é meramente educação; nem tão pouco apenas democracia?
É o Capital em sua integralidade: é renda básica de cidadania; é informação; é democracia direta. Cada um isoladamente se constituindo por si só numa forma especifica de capital, ao mesmo tempo, que são faces de um mesmo capital que é uno, tridimensional e eminentemente social.
Isto é Capital: crédito, conhecimento e cidadania. Compreendemos o Capital como todos estes bens comuns, unidos e compostos cada qual por todos; e o Todo (o capital social) tridimensionado na interação entre cada esfera sem a exclusão de nenhuma das demais.
Assim como as esferas Econômicas, Cultural e Política se inter-relacionam (tri) tridimensionando a rede denominada sociedade. O capital produzido e compartilhado em cada uma destas dimensões compõe o que denominamos capital social ou simplesmente Capital.
Porque se a renda é capital econômico; se a educação é capital cultural; e se o associativismo é capital político, nenhuma das três deixa de ser composta pelas demais, nem pode ser ignorada na formação do Capital Social e conseqüentemente do próprio desenvolvimento humano.

O CONSÓRCIO DA RENDA BÁSICA DE CIDADANIA EM QUATINGA VELHO
Tudo isso que numa primeira leitura pode parecer bastante abstrato, é para nós, hoje, a estrutura conceitual que norteia as práticas do ReCivitas em direção a Liberdade- sendo uma das principais razões para os resultados que temos obtido com a Renda Básica de Cidadania em Quatinga Velho.
Contudo essa visão que nos norteia, embora estivesse presente em nossos princípios desde a fundação do ReCivitas, só viria a se estruturar e confirmar a partir da experiência em nossos projetos, ou, em outras palavras, na prática – como não poderia deixar de ser.
Nasceu e se impôs como resposta aos dilemas enfrentados por toda organização da sociedade civil que se dispõe não apenas a atuar, mas ir além, até a raiz do problema que se propôs enfrentar: a pobreza. Pobreza não apenas em seu sentido usual, mas total: a ausência de equilíbrio ou equidade na sociedade, a carência de capital social, presente, portanto, em todas as esferas da sociedade ainda que se dê maior ênfase a esta ou aquela geralmente a econômica, e cultural, raramente a política, e quase nunca a total - a Social.
Embora a distribuição de renda ganhe espaço graças ao sucesso dos programas governamentais - que merecem elogios por combater a pobreza econômica direto na raiz (dinheiro), e que com a mesma imparcialidade merece críticas, por fazê-lo de forma a disseminar a pobreza humana (cultural) e, sobretudo política, ao agregar condicionalidades e obstáculos burocráticos que abrem espaço para o clientelismo e paternalismo junto com toda sorte de tecnocretinismos – a educação, quase sempre palavra destituída de qualquer outro significado maior, além de uma visão idílica dos depósitos de crianças denominados escolas, clama, insiste em chamar nossa atenção.
Quase como um reflexo condicionado, a educação que nós recebemos parece que nunca deixa de se repetir em nossa mente sua importância fundamental, ainda que não tenhamos a menor idéia do que é pedagogia, ou muito menos que o aprendizado que vai muito além do alcance das instituições de ensino.
É, portanto, perfeitamente desculpável nossa primeira reação de buscar na educação a solução única para todos os problemas sociais. Contudo, conforme defrontamos a realidade fora da perspectiva irreal do “observador e seu objeto de estudo”; conforme saímos do plano teórico para a experimentação, ou literal vivência dos problemas que fomos acostumados a “conhecer” de posições privilegiadas, vai ficando cada vez mais claro o quanto é impossível supor a instrumentalização da “promoção de consciências ambientais”, “da difusão de responsabilidades sociais”. Como falar de consciência, responsabilidade ou até mesmo direitos para pessoas submetidas a níveis de privação desumanos? Desumanas a ponto de não ter como pensar em outra coisa senão a sobrevivência imediata - e “imediata” quer dizer não amanhã, mas hoje. Como falar em futuro, onde não existem perspectivas? Como falar de abstrações onde de concreto não existe sequer o básico?
Trabalhando e, sobretudo, vivendo em condições de privação e destituição dos recursos mais fundamentais a vida e dignidade, se tornava enfim evidente (sensível) o inegável: é impossível qualquer desenvolvimento humano onde não existe a mínima garantia a sobrevivência.
Claro que uma renda básica garantida não seria a solução de todos os problemas, mas nenhum problema poderia sequer começar a ser resolvido sem ela. Pelo simples motivo que fazia absurda qualquer ação onde não existam direito a vida ou liberdade, uma renda básica incondicional era um primeiro passo essencial.
Contudo desta primeira certeza surgiriam, naturalmente, novas dúvidas: como garantir uma renda incondicional sem ferir a dignidade, a livre iniciativa, ou mesmo, interferir com a independência e responsabilidade de quem a recebe?
O conceito da Renda Básica Universal era a solução perfeita para esta questão à medida que sempre recompensava o trabalho; não promovia nenhum tipo de descriminação; e coibia a burocratização; mas o mais importante, não feria a dignidade, porque não se configurava como benesse ou assistência, mas sim direito (inclusive previsto em lei) .
Embora a incondicionalidade, inerente a definição da RBC, resolvesse muitos dos problemas relacionados à dependência, descriminação e clientelismo político, havia ainda uma questão que nem mesmo a incondicionalidade podia dar conta sozinha: o da geração de relações de poder inibidoras das livres relações geradoras do capital. Só seria possível eliminar os vícios tecnocráticos e coorporativos que coibiam o desenvolvimento dos ciclos virtuosos de confiança e reciprocidade em um modelo libertário que visasse a completa - ainda que necessariamente gradual - emancipação da comunidade política formada para e pela a RBC em democracia direta. Algo que conseguimos realizar pela adoção desde o inicio dos princípios de autodeterminação e democracia direta na comunidade pioneira de Quatinga Velho.
Para colocar em prática este modelo libertário ao longo destes 2 anos de projeto que se completam agora nos valemos somente de contribuições voluntárias de pessoas físicas que financiam a RBC nesta comunidade. Um Consórcio de Cidadãos, pagando diretamente a RBC para outros cidadãos. Modelo escolhido não apenas porque não encontramos apoio nem muito menos vontade política para que o poder público realize esse direito direto, como é seu dever, conforme a lei, mas porque o modelo de contribuições voluntárias é o mais coerentes como espírito não impositivo e coercitivo da RBC.
E se uma associação de pessoas dispostas a garantir a liberdade real para todos podem criar comunidades livres, democráticas e autodeterminadas, a associação (federação) destes núcleos também pode constituir uma verdadeira rede de segurança social, sociedades sem fronteiras, independentes e integradas. Por que não?
A erradicação (como a produção) da miséria em todas as suas dimensões não é só uma questão de vontade política (ou de governos,) mas essencialmente de economia política em sociedades livres - como sempre foi.

O BANCO SOCIAL
Solidariedade, mutualismo, associativismo e principalmente liberdade não são conceitos abstratos; podem e devem ser concretizados principalmente em sociedades democráticas que dispõe não apenas de livre mercado, mas de instituições financeiras e sistema monetário sólido o suficiente para tanto.
Ora se a RBC é capaz de erradicar a miséria é porque ela cria as condições fundamentais à segurança social (não-violência e não-privação) para o desenvolvimento humano e econômico. E se assim o faz é que não deve precisar de impostos nem imposições para se realizar, mas pura e simplesmente de capital para que se (re)produza também como capital. É passível sim, de incentivo e isenções fiscais, em modelo que talvez seria o único a se constituir como beneficio para toda a sociedade, não apenas porque não visa a mera acumulação financeira, mas também porque seu retorno incide diretamente na base econômica - podendo por esta razão gerar inclusive ganho de arrecadação para o próprio sistema tributário.
Eis porque da criação do Banco Social da Renda Básica de Cidadania, (o BIGBANK do artigo anterior), porque não é só perfeitamente possível implementar a RBC, é possível, e preferível, fazê-lo dentro do livre mercado com uma gestão democrática, competitiva e transparente que só uma instituição de interesse público da sociedade civil pode conferir.
Um Banco Social destinado a ser a instituição de financiamento destas comunidades democráticas formadas pelo contrato social de garantia ao direito a vida e liberdade através do instituto da Renda Básica Universal. O indutor descentralizado da criação desta Rede de Seguro Social sem Fronteiras – não como um modelo final, mas um ponto de partida a ser aperfeiçoado e replicado neste processo de livre constituição desta Rede Social.
Com este Banco Social o ReCivitas pretende demonstrar que é possível ultrapassar os paradigmas de políticas econômicas de classe: “de pobre para pobre”; “de rico para pobre”; (ou a pior), “de rico para rico”. É possível inaugurar política econômica universalista e libertária, de garantia de fato de direitos humanos e de exercício pleno da cidadania.
O desenvolvimento desta tecnologia social formada por: Banco Social da RBC; comunidades democráticas; e Rede de Seguridade, não se destina a “reduzir o fardo” do poder público, ou substituí-lo no cumprimento de seu dever; nem muito menos se propõe a eximir as grandes empresas e fortunas de sua responsabilidade social (ou falta de). Não vem para compensar acumulação de riquezas, nem para aliviar deveres públicos, é exercício de livre iniciativa, verdadeira porta de saída da passividade; da reclamação a ação; é a transformação do cliente-consumidor em investidor-cidadão.
O que na prática abre a possibilidade para que possamos financiar nossa própria segurança social, pela simples garantia a todos de uma renda incondicional através da associação para aplicação conjunta de nosso próprio capital financeiro, isto é, nossas economias, poupanças.
Sim, podemos bancar nossa própria seguridade diretamente, ao invés de pagarmos e esperarmos a vida inteira ou uma adversidade para começarmos a receber aquilo que é nosso por direito; e não como assistência, mas como o rendimento de um investimento social. Um investimento no próprio cumprimento da finalidade primordial de todo Pacto Social! –através de uma tecnologia social mais ampla e efetiva para a neutralização a violência antes de sua deflagração, simplesmente através da erradicação de suas principais condições geradoras: a miséria e a privação.
Em linhas gerais, eis a meta desta nova instituição financeira sem fins-lucrativos destinada ao financiamento da RBC, microcrédito e economia solidaria em sociedades livres. Partindo do princípio que o contribuinte não precisa renunciar ao seu capital; ao contrário, pode e deve receber o rendimento de seu investimento financeiro, humano e político. Recebendo o retorno financeiro de suas economias aplicadas exatamente como em qualquer instituição financeira ou banco, porém com a certeza que nenhuma parte dos valores geridos e gerados será distribuída a acionistas ou “donos”, nem se prestará a especulação financeira. Certeza que só processos transparentes e democráticos podem conferir de que o capital será aplicado nos setores produtivos, éticos e pacíficos da sociedade.
Investimentos cuja parcela acordada do rendimento das aplicações é sempre destinada ao pagamento da RBC. Prioritariamente em comunidades regidas pelos princípios da universalidade, democracia direta e autodeterminação, até a difusão gradual para todos, absolutamente todos os membros de nossa comunidade maior chamada Brasil; e por que não também, para aquela comunidade que naturalmente e inegavelmente pertencemos desde o nosso nascimento, a Humanidade.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O CULTO AO ABSOLUTO

Ou da Epistemologia Totalitária

É possível remontar os males da humanidade ao início das civilizações,
ou da perspectiva de sua gênese cultural, aos arquétipos sob os quais
os estados civis se ergueram na santíssima trindade do
Pai-Pátria-Patrão, expressões das três dimensões do sistema social
patriarcal. Contudo a civilização patriarcaica não é a gênese deste
mal, embora seu derradeiro fruto, o Estado, seja de fato o corpo que
dá vida ao espírito de guerra de todos contra todos.

É inegável que o monopólio e sistematização da violência seja a
própria incorporação do terror que quebra os aprisionados em seu
domus, mantendo os crentes que a cela não prende e as grades não
separam, mas protegem. E se esses Leviatãs, que nós mesmos animamos,
conduzirão a espécie humana a extinção, não será, contudo, possível
imputar a estas entidades sem caráter, personalidade, vontade ou mesmo
força, além daquelas que emprestamos a elas, a responsabilidade sobre
nosso destino, ou a origem deste mal. Sistemas perpetuam sistemas, mas
não sem a passividade, anuência, e alienação dos indivíduos que os
compõe.

Antes da consolidação temporal do poder, dentro das sociedades que
gestaram esse monstro hobbesiano, já preexistia o medo de todos contra
todos para catalisar essa nova ordem. Mas na gene da sua concepção não
estava só o temor, mas também a vontade de ser, corrompida e
disseminada como ânsia por poder. Antes da luta de classes, no
princípio da exploração do homem sobre o homem, havia o desejo de
poder, por todos, uns sobre os outros.

Neste mundo convertido em estado de guerra, é possível que as amazonas
tenham sido os primeiros quilombolas, já que a mulher foi o primeiro
escravo do homem pelo homem. Mas na origem da domesticação de animais,
homens e mulheres, no aprisionamento de todos no domus doméstico,
esteve presente muito mais do que a mera afirmação do poder masculino
sobre o feminino. Antes do princípio masculino se perverter na própria
manifestação da bestialidade e belicosidade, antes das segregações de
gênero, classe ou sangue; Antes mesmo do genocídio, da divisão do
trabalho e do pecado; no gênese das sociedades patriarcais estava a
cultura da violência expressa numa psique coletiva já dominada pelo
poder e, sobretudo por seu desejo compulsivo.

O desprezo pelos valores femininos, a submissão da natureza pela força
que caracterizam a sociedade patriarcal não são meramente a expressão
do poder masculino, mas a própria manifestação de toda uma cultura da
violência gerada dentro de uma estética da morte, Um conluio de
mortos-vivos, múmias, vampiros que se negam a envelhecer e morrer em
seu desejo cego de perpetuação e acumulação do mesmo, reprimindo o
advento do novo, frustrando sua geração, abortando toda concepção.

Por que então as sociedades não se ergueram sobre os matriarcados?

Por trás da supremacia do homem sobre a mulher e a natureza há mais do
que exercício da força bruta. Por trás da distinção de gênero, por
trás da violação sistemática da mulher e da terra, jamais houve pulsão
sexual. O estupro que caracterizada todas as relações políticas,
econômicas e culturais da sociedade patriarcal, não é só uma afirmação
do masculino sobre o feminino, do belicoso sobre o pacifico, do forte
sobre o fraco, mas antes a afirmação do poder sobre a liberdade, e das
pulsões de morte sobre os valores da vida.

No princípio ou essência de toda relação de dominação está o desejo
pelo poder. Mas o desejo de poder não é sexuado ou assexuado, é a
própria repressão da sexualidade e negação do ato reprodutivo. Não tem
gênero, nem sexo, no desejo de poder, há tão somente o estupro. A
violação de Eros por Tanatos.

No estupro de Eros por Tanatos, no repudio a fertilidade e na repulsa
a fecundação, é latente o ódio a natureza e a mulher, mas não como
afirmação da masculinidade, mas como inveja do dom da maternidade,
corrompido até o ódio a espontaneidade e naturalidade da vida e sua
auto-geração.

A gênese do deus-pai-rei: belicoso, vingativo, todo poderoso que vem
para sacralizar a posse, a dominação e a força. Diviniza poder,
privação e rarificação. Amaldiçoar a terra, a vida, e a abundancia. E
demonizar o sexo, a mulher e a liberdade. O deus dos puritanos que
amam as armas, as pátrias e as guerras, e vêem beleza na morte, e
pecado no nu feminino. Julgando, punido e castigando tudo que não
idolatre suas forças, não se submeta a sua estética da morte e que não
cultue seu poder egocentral e absoluto.

Um mal que não acomete povos, gêneros, etnias, ou classes, mas toda a
psique humana.
Antes da deflagração dos conflitos, há a corrupção. E por trás de todo
ato de violência consumado, há antes uma batalha interna perdida do
homem consigo mesmo. Perversão da ânsia de liberdade em desejo de
poder, a corrupção da vontade de ser, em poder e ter, como compensação
gerada pela frustração em realizar o eu em si. Neste sistema o ser
oprimido extravasa sua liberdade reprimida impondo suas vontades ao
próximo. Violência que gera opressão e violação da liberdade do outro,
num ciclo vicioso onde a frustração da livre e espontânea vontade de
ser de um indivíduo se perverte em desejo de poder sobre os demais. A
liberdade corrompida e disseminada em relação de poder.

Embora o estado civil como toda e qualquer forma de organização
estratificada e hierárquica seja a própria sistematização desta
perversão. Este não é um fenômeno exclusivo ou originário da
civilização, emergindo sempre como uma condição ou resposta
condicionada a um estado de privação de liberdades reais. Condição que
caracteriza o próprio estágio evolutivo da espécie humana, que mesmo
consciente de sua racionalidade, é ainda inconsciente dos seus limites
epistemológicos. O que nos faz tomar como realidade nossas impressões
mentais do real, e é sob está ilusão que se assenta as idéias
absolutas e sua idolatria.

O culto ao poder absoluto é de fato decorrente de uma determinada
percepção da realidade que desaparece de forma tão natural ao
indivíduo que toma consciência da sua realidade quanto o próprio medo
da chuva ou da morte, ao homem que verdadeiramente compreende estas
como fenômenos naturais. Contudo suas raízes não se assentam meramente
no plano das crenças, ou tem uma raiz somente emocional, mas esta
assentada nos próprios limites da epistemologia humana. Superar a
idolatria aos valores absolutos não demanda uma ampliação da
percepção, mas sim o reconhecimento epistemológico dos limites do eu.

O Universo pode não girar mais em torno da terra, mas o Universo
continua girando em torno do homem, e o pior de tudo sem, que este
sequer se de conta disto.

Antes do cartesianismo mecanicista se tornar o paradigma dominante do
conhecimento, e a dinâmica newtoniana servir de modelo mental até
mesmo para reger as liberdades, o ato do conhecimento já estava
completamente impregnado de relações de poder, seja de homens com
homens, seja do homem com o mundo, agora cada vez mais objeto do seu
conhecimento. E o mundo não tomava apenas a imagem e semelhança do que
o homem via, mas de como ele se via neste mundo.

A medida que o homem substitui o estado de natureza pelo estado civil,
cada vez mais a natureza se assemelhava ao próprio estado de poder sob
o qual erguia suas civilizações. Todas as naturezas agora eram objeto
de domínio. Não apenas os homens haveriam de se submeter a leis, serem
regidos por forças seguir trajetórias previsíveis e predeterminadas,
medidos, contados e quantificados, mas a própria natureza.

Tão mais cegos estamos no culto absoluto quanto acreditamos que deus é
a imagem e semelhança do homem, e a natureza a imagem e semelhança de
seus domus não apenas reais mas mentais. Quanto mais convencidos somos
de que as descrições, modelos, interpretações pelas quais tomamos
ciência da realidade como a própria realidade mais longe estamos de
compreender a complexidade do real que nossa mente necessariamente
ignorar para apreender.

O conhecimento mais do que a abstração de algo é também a ignorância
de tudo mais. Nosso conhecimento é limitado não apenas porque estamos
encerrados no objeto do conhecimento, mas porque simultaneamente o
objeto do conhecimento está encerrado em nós. E só há paradoxo, se não
compreendermos que todo conhecimento da realidade é inseparável da
mente que o compõe. Sendo a compreensão total sempre impossível, não
só porque o desconhecido é infinito e, portanto incompreensível a
finitude inerente ao ato de conhecer, mas sobretudo porque não existe
uma única realidade verdadeira, mas uma verdades múltiplas sobre a
realidade que embora seja una, não é uma mas complexa e diversa.

A ilusão de um eu absoluto, soberano e capaz de construir sua
identidade autônoma separado do todo, se reflete na ilusão da verdade
absoluta, num universo egocentralizado. O que não quer dizer que o
conhecimento seja impossível, que as verdades sejam relativas, e a
realidade desconexa, mas que o conhecimento é constituído e não
descoberto, as verdades não são simples e absolutas mas complexas e
diversas, e a realidade não é ou não é, mas significada integradamente
por tudo que é, não-é, e tudo que sequer ainda foi existencialmente
distinto, o existente-inexistente-ignorado. Um integral que não é
total a medida que não perfaz o incognoscível.

Da crença na verdade única, ainda que está verdade seja que as
"verdade é relativa", alias sentença mais redução simplificadora e
totalitária, surge a adoração-topor da própria idéia-sensação do
Todo-Poder-Uno. A própria construção epistemológica do mundo
egocentrado. O Absoluto não emerge da ignorância, mas da mais ferrenha
certeza do crente de que tudo que é por ele, para ele, ou nele é não
apenas verdadeiro, mas a expressão da verdade. E deste deus, senhor da
verdade que nasce na mente do cultuador, surge a cabeça-tribunal e a
mente-juiz, o pensar julgando, o expressar-se sentenciando.
Inquisidor, juiz e executor de todo o processo epistemológico baseado
em julgamento. Sentenciado a culpa e inocência, julgando verdade ou
falsidade, legislando sobre a realidade e a fantasia, para tudo que
deponha perante seu juízo.

O julgamento nasce da predisposição na crença de que a mente detém a
verdade, quando na realidade emerge espontaneamente da interação das
diversas perspectivas que a compõe intercomunicando sua percepção e
entendimento. A verdade não é relativa, incomunicável, ou
incompreensível, mas produto subjetivo do entendimento, comunicação e
interelação. O conhecimento do real se processo em níveis de interação
e compartilhamento da subjetividade na rede. O conhecimento não para,
não se cristaliza, se estrutura ou solidifica, ou se detém, mas
circula e se define como partícula-onda dentro da própria rede.

Uma rede de conhecimento constituída de verdades complexas, compondo a
realidade comum, da interconexão das subjetividades. O real composto
não da distinção do observador e o objeto do conhecimento, mas das
perspectivas interconexas de diversas mentes integradas em rede que
compõe a própria percepção de cada indivíduo pela significação do
existente-inexistente. O real como o próprio fenômeno da compreensão.
A verdade como o próprio conhecimento. E a consciência como
entendimento da ilusão do real. O despertar do culto do absoluto, a
libertação da prisão dos juízos, o fim da compulsão pela busca da
verdade, não pela sua negação, mas pela sua multiplicação e
reintegração na visão da complexidade da rede do real, não uma serie
linear contrapostas de verdade relativas, mas um sistema integrado de
verdades complexas. E o fim da era da alienação passa primeiro pelo
entendimento das verdades tão complexas e diversas, interconexas e
dinâmicas quanto a própria realidade que subjetivam.

Podemos dizer que ainda não saímos da infância da nossa
intelectualidade. Todos nossos sistemas socioeconômicos estão ainda no
estagio da psicologia infantil. Analogia que não ameniza a brutalidade
do patriarcalismo nem a ignorância da idolatria ao poder absoluto;
esteja este disfarçado de pai ou divindade para os alienado, ou
completamente desnuda em sua violência aos desobedientes, a tutoria
compulsória da maioria dos seres humanos por outros é a estrutura
cristalizada que impede o ser humano de desenvolver toda a sua
natureza solidária e inteligente. E de nada servem os iluminados. O
prolongamento da infantilidade de nossa espécie como todo estagio de
desenvolvimento não é determinado por este ou aquele indivíduo, mas
pela condição formada pela integralidade dos seres humanos. E é mais
pela insistência em perpetuar a dominação, privação e segregação que a
violência e ignorância prevalecem, do pela incapacidade do homem em
desenvolver sua inteligência e consciência.

Podemos ainda chamar este período milenar de culto ao absoluto como a
Era da Alienação. Pois embora possa se caracterizar pela ascensão dos
Estados, a exploração sistemática do homem pelo homem ou ainda pela
própria idolatria, todas se fundem na formação de uma hierarquia
social cuja característica proeminente é a própria alienação do todos
por todos, no seu papel duplo e simultâneo de dominadores e dominados
desnaturando e desumanizando a humanidade.

Talvez sirva de consolo que está era esteja para se findar. O dogma da
maldição do trabalho e a possessão como valor social começam a ruir
pelo peso da insustentabilidade de suas próprias estruturas. Se a
servidão voluntária e a escravidão assalariada ou não, jamais se
sustentaram sem o pensamento judicioso condicionado pela idolatria ao
absoluto, essa doutrinação que adestra o ser humano para não se
rebelar contra o cárcere, o arreio e a chibata atingiu na
contemporaneidade níveis de elaboração que levam o ser humano a beira
de perda de seus caracteres pessoais, sua individualidade, fazendo-o
ser autômato que crê-se piamente autônomo, crente que as correntes em
seus pés são muletas que o mantém em pé.

A integração de técnicas de evangelização, com propaganda, e
condicionamento animal estas duas ultimas com avanços significados no
século passado e aplicação massiva no consumo industrial e político,
permitiu o máximo desenvolvimento do totalitarismo, gerando uma
sociedade uniformizada, onde a escravidão e a servidão permanecem, mas
como planos inconscientes de um processo onde a compulsão toma o lugar
da fome e do porrete, o que não quer dizer que ambos não estão
devidamente reservados aos que por ventura despertem desta letargia
programada.

Escravidão, servidão e compulsão sempre foram formas complementares
que viabilizaram os domínios, contudo se num dado momento a escravidão
foi a face do sistema de produção mais acentuada, e noutros a
servidão, na contemporaneidade é a compulsão que passa a ser o fator
determinante. Do trabalho compulsório ao trabalho compulsivo. Da
servidão voluntária a servidão compulsiva, da escravidão a compulsão.
Controle, manipulação, convencimento. Condicionamento. Não há mais
doutrinação, e a institucionalização provedora de desnaturação
educacional se desescolarizou, ou melhor, o panóptico tomou as ruas,
se transmite por todos os meios, ocupa todos os espaços. Nascemos e
morremos imersos em conteúdo não mais desenhado para nos conformar a
miséria cultural política e econômica, mas a nos fazer tomar parte
ativa da vivisseção de nossos corpos e almas e lamber a mão de quem
nos disseca fazendo-nos sonhar com teorias conspiratórias. Mas teorias
conspiratórias do que? Tudo é feito as claras, sem anestesia e "have a
nice day".

Jamais foi tão difícil ao homem libertar-se, não só porque sua prisão
tenha todo conforto de uma sala-de-estar e sua fome a marca da
obesidade mórbida, mas sobretudo porque o escravo crê-se absolutamente
livre, e seu mundo único absoluto, verdadeiro, simples e real.
Liberdade reduzida a ter e fazer e acima de tudo consumir escolhas.
Medo, ansiedade pânico, ao homem réu-juiz perene do tribunal do uno,
verdadeiro e todo poderoso. Comportamento compulsivo condicionado no
culto ao absoluto.

Olhar para o homem desnaturado não pela civilização, mas por este
culto ao absoluto, é tudo o que se precisa para se perpetuar a
essência desta falácia liberal. As liberdades artificiais mecânicas
que se chocam freiam e se findam umas as outras em completa ignorância
que a verdadeira liberdade é natural e orgânica, liberdades que se
encontram, se unem e multiplicam. Falácia que sustenta o estado da
falso segurança pela renuncia das liberdades. Quando a verdadeira
liberdade se funda na segurança dos estados de garantia do direito a
liberdade. Liberdade com segurança e segurança como Liberdade.

Na Liberdade real, no fim de toda a privação, rarificação e pobreza do
capital econômico, cultural e político, reside a saída da farsa que
encobre o sentido da existência. Porque a alienação não se finda com
palavras ou atos, com teorias ou práticas, mas das teorias postas em
pratica com atos repletos de significado, conduzidos da reflexão para
a ação e da ação a reflexão. Das palavras que ou são a reflexão do
sentido do ato, ou o prenuncio do sentido da ação numa Pedagogia da
Inspiração.